Fagulha #04: Resistências contra Trump e Bolsonaro

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Saudações anarquistas!

Como a experiência dos anarquistas americanos na resistência contra Trump pode contribuir para as nossas ações aqui no Brasil? Camarada Danse conversa com Brian D., do CrimethInc. Ex-Workers’ Collective, sobre o coletivo, as estratégias de enfrentamento contra o fascismo, e as saídas para além da democracia.

Fiquem atentos que vamos sortear uma cópia do livro “Da democracia à liberdade: A diferença entre governo e autodeterminação”, do CrimethInc. Ex-Workers’ Collective. As instruções estão no episódio, então fiquem atentos!

#Fagulha

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Fuck off Google

(Publicado originalmente como um capítulo do livro do Comitê Invisível “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição”. N-1 Edições, São Paulo. 2015)

 

1. NÃO HÁ “REVOLUÇÕES FACEBOOK”, MAS UMA NOVA CIÊNCIA DE GOVERNO, A CIBERNÉTICA

Poucos conhecem a genealogia e, no entanto, vale a pena conhecê-la: o Twitter provém de um programa denominado TXTMob, inventado por ativistas norte-americanos para, através do celular, se organizarem durante as manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano de 2004. Esse aplicativo foi então utilizado por umas cinco mil pessoas, que partilhavam em tempo real informações sobre as ações em curso e os movimentos da polícia. O Twitter, lançado dois anos mais tarde, foi utilizado para fins similares, por exemplo, na Moldávia. As manifestações iranianas de 2009, por sua vez, popularizaram a ideia de que ele seria a ferramenta necessária para coordenar os insurgentes, em particular contra as ditaduras. Em 2011, quando as revoltas atingiram uma Inglaterra que pensávamos definitivamente impassível, os jornalistas fabularam, e com lógica, que os tweets haviam facilitado a propagação dos motins a partir de seu epicentro, Tottenham. Acontece que, devido às suas necessidades de comunicação, os insurgentes começaram a utilizar os BlackBerry, celulares seguros projetados para o alto escalão de bancos e de multinacionais, e dos quais os serviços secretos ingleses não tinham sequer as chaves de decodificação. Um grupo de hackers chegou a piratear o site da BlackBerry para dissuadi-la de cooperar com a polícia. Se dessa vez o Twitter permitiu uma auto-organização, foi mais a do grupo de cidadãos-varredores que resolveu limpar e reparar os danos causados pelos confrontos e saques. Essa iniciativa foi coordenada pela Crisis Commons: uma “rede global de voluntários que trabalha em conjunto para construir e utilizar ferramentas tecnológicas que ajudem a responder a desastres e que melhorem a resiliência e a resposta a crises.” Na época, um jornalzinho da esquerda francesa comparou tal iniciativa com a organização da Puerta del Sol durante o movimento dito “dos indignados”. O amálgama entre uma iniciativa que visa a acelerar o regresso à ordem e o fato de milhares de pessoas se organizarem para viver numa praça ocupada, apesar das constantes investidas da polícia, pode parecer absurdo. A não ser que se veja aqui apenas dois gestos espontâneos, conectados e cidadãos. Desde o 15-M, os “indignados” espanhóis, pelo menos uma parte não negligenciável deles, invocaram sua fé na utopia da cidadania conectada. Para eles, as redes sociais virtuais não haviam apenas acelerado a propagação do movimento de 2011, elas haviam, também e sobretudo, lançado as bases de um novo tipo de organização política, para a luta e para a sociedade: uma democracia conectada, participativa, transparente. É sempre deplorável, para “revolucionários”, partilhar uma ideia dessas com Jared Cohen, o conselheiro para antiterrorismo do governo norte-americano que contatou e pressionou o Twitter durante a “revolução iraniana” de 2009 para manter seu funcionamento apesar da censura. Recentemente, Jared Cohen escreveu com seu ex-patrão do Google, Eric Schmidt, um livro político paralisante, “A nova era digital”. Já nas primeiras páginas pode-se ler esta ótima frase para alimentar a confusão quanto às virtudes políticas das novas tecnologias de comunicação: “A internet é o maior experimento envolvendo anarquia da história.”

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[Zine] Contra a pacificação, o fogo das revoltas anarquistas!

Estamos iniciando um projeto novo, divulgando zines e textos de compas e coletivos anarquistas e autonomistas, bem como criando nosso próprio material. Para inaugurar, o zine-livreto “Contra a pacificação, o fogo das revoltas anarquistas!”, do Matheus Marestoni, uma reflexão sobre os impactos das Revoltas de Junho no anarquismo insurrecionalista, ação direta, tática e estratégia anarquistas, e a tentativa do Estado e dos movimentos moderados de cooptar e pacificar as ruas.

[…] nota-se o combate ao princípio da autoridade. Esse combate norteia as ações diretas, que se configuram de diferentes maneiras com o passar dos anos. Contudo, concomitantemente a atualização das táticas de ação direta e a tentativa do Estado de suprimi-las também se atualiza. Não se pode deixar mencionar a atuação recorrente dos movimentos institucionais e partidos de esquerda no combate aos anarquistas, agindo concomitantemente e de encontro ao Estado.

Contra a pacificação, o fogo das revoltas anarquistas!

Capitalismo de vigilância e tecnopolíticas do desejo

O Grande Irmão encontra Helmholtz Watson

No clássico “1984”, George Orwell apresenta uma distopia em que os cidadãos estão sempre sendo vigiados pelo Grande Irmão. Em uma releitura imaginativa do que Foucault chamaria de “Panóptico“, os cidadãos de Oceania estão sob constante vigilância, ou comportam-se como tal. Assim, em uma sociedade disciplinar, a onipresença das tecnologias de vigilância fazem com que os indivíduos se auto-censurem, mesmo que ninguém esteja vendo as câmeras. Os indivíduos internalizam o Grande Irmão.

O filósofo francês Gilles Deleuze assinala a mudança das tecnologias de vigilância na transição da sociedade disciplinar para sociedade de controle. Na sociedade disciplinar, a ideia de vigilância remetia ao confinamento e à restrição do movimento físico dos indivíduos no espaço. Vigiar era olhar e regular os passos dos indivíduos. Na transição para a sociedade de controle, com a explosão das comunicações, vigiar é fuçar mensagens, interceptar, ouvir, interpretar. Da câmera passamos aos dados.

Em uma carta já famosa endereçada a Orwel, Aldous Huxley – o escritor de outra distopia famosa da ficção científica, “Admirável Mundo Novo” – apontava que achava sua visão do futuro – uma sociedade controlada por atratores de desejo, que esvaziam os desejos mais radicais e os transformam em seu contrário – mais provável do que a sociedade baseada na violência exposta por Orwell. “Ainda na próxima geração, acedito que os comandantes deste mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, do que clubes e prisões, e que a sede de poder pode ser tão completamente satisfeita sugerindo que as pessoas amem sua servidão quanto chicoteando-as e chutando-as para que obedeçam”

É profundamente irônico que o capitalismo contemporâneo tenha encontrado como solução um misto de Orwell e Huxley: o capitalismo de vigilância.

 

Capitalismo de vigilância

Deleuze nos lembra que enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo que se expande junto às redes de informação. A passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à imagem a potencialidade da informação, deslocamos a abordagem do campo de representação, passando a compreendê-la enquanto a própria expressão dos acontecimentos.

As tecnopolíticas da sociedade de controle fazem com que os indivíduos tornem-se separados, distintos, divididos, cindidos: “Já não nos encontramos lidando com o par massa / indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’ e massas, amostras, dados, mercados ou ‘bancos’“.

Onde se encontra a vigilância nesse movimento? A acadêmica Shoshana Zuboff criou o termo “capitalismo de vigilância” para descrever a nova configuração do capitalismo que monetiza dados adquiridos por vigilância. Recentemente, foi revelado que a concessionária da linha amarela do metrô de São Paulo instalou portas interativas digitais nas estações Luz, Pinheiros e Paulista. Por causa disso, sem escolha, os indivíduos entregam dados pessoais no metrô de São Paulo diariamente: as portas filmam os rostos de passageiros e procuram adivinhar as emoções sentidas no momento. A ideia é que isso ajude a categorizar os usuários e o metrô possa exibir propagandas de maneira eficiente.

Zuboff contrapõe a vigilância estatal, que objetiva o controle dos indivíduos e a identificação de pessoas específicas – típico das sociedades disciplinares – à vigilância do capitalismo. A metáfora do Big Brother foi substituída pelo Big Other.

No capitalismo de vigilância, a vigilância constante de nossos pensamentos, desejos, e ações, principalmente na Internet, combinada com análise de algoritmos por inteligência artificial resulta na previsão e manipulação de nossos desejos para a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. “Em seu cerne, o capitalismo de vigilância é parasita e auto-referencial. Revive a velha imagem de Karl Marx do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas com uma guinada inesperada. Ao invés de se alimentar do trabalho, o capitalismo de vigilância de alimenta de todos os aspectos da experiência humana”. As ferramentas do capitalismo de vigilância – e não estamos falando só do Google e do Facebook, mas de uma lógica pervasiva que atravessa todas as nossas relações online e, cada vez mais, offline – nos dessensibiliza para a destruição progressiva da autonomia individual e coletiva, da liberdade de pensamento e ação, da privacidade, e da memória, ao mesmo tempo em que demanda que as corporações e a classe rica tenham direitos absolutos.

Anunciando o episódio de estréia do Fagulha Podcast

Saudações anarquistas!
O que é esse troço que vocês chamam de “anarquismo”? Ele sempre foi do mesmo jeito? Como surgiu, e onde está hoje? No episódio de estréia do Fagulha Podcast, Camarada Emma e Rei Plebe discutem um pouco a história inicial do movimento, e nosso convidado Acácio Augusto nos ajuda a compreender o anarquismo contemporâneo, suas pautas, e suas contribuições para as lutas da Esquerda radical.

 

Link para o episódio: https://fagulha.podbean.com/e/01-anarquismo-passado-e-presente/

 

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Playlist do episódio
Escalier – Psicose 4-48
Zegota – Kosi Idina (So That Obstacles Are No More)
Colligere – O Poder do Pensamento Negativo – https://colligere.bandcamp.com/
La Plataforma – Guerra Civil – http://theplatform.nuevaradio.org/aud_MDL.htm
Point of No Return – Ponte
La Plataforma – No Pasarán – http://theplatform.nuevaradio.org/aud_MDL.htm

Textos para leitura
Acácio Augusto, “Anarquismo contemporâneo, pós-anarquismo, neoanarquismo… Para travar neologismos” – https://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/download/21729/16008
Acácio Augusto & Edson Passetti, “Anarquismos & Educação” – https://grupoautentica.com.br/autentica/livros/anarquismos-educacao/448
Alexandre Samis, “O Anarquismo de Proudhon a Malatesta” – https://we.riseup.net/assets/421832/o+anarquismo+de+proudhon+a+malatesta.pdf
Edgar Rodrigues, “Historia do movimento anarquista no Brasil” – https://we.riseup.net/assets/432533/historia+do+movimento+anarquista+no+brasil.pdf
Tadzio Mueller, “Poder, hegemonia e a estratégia anarquista” – https://coletivoponte.noblogs.org/post/2018/11/08/poder-hegemonia-e-a-estrategia-anarquista/

Links
Núcleo de Sociabilidade Libertária – Nu-Sol – https://www.nu-sol.org
Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento – Lasintec – https://lasintec.milharal.org/

O 1º de Maio é anarquista!

Após a Guerra da Secessão nos EUA, algumas regiões daquele país passaram por um acelerado processo de industrialização que, assim como na primeira fase aqui no Brasil, se baseou na extensa exploração de mão de obra imigrante. Em Chicago, palco da Revolta de Haymarket, os operários tinham jornada de trabalho de pouco mais de 10 a até 17 horas por dia, trabalhando 6 dias por semana. Um extenso movimento de sindicalistas de intenção revolucionária foi se montando em lutas pela melhoria nas condições de trabalho. Os patrões, claro, agiram como patrões, e reagiram com medidas anti-sindicais e anti-solidariedade: demitiam e marcavam participantes; bloqueavam empregados; recrutavam fura-greves; contrataram espiões, criminosos, e segurança privada; e incitavam conflitos étnicos. Diversas organizações cresceram naquele momento; o movimento anarco-sindicalista de Chicago, composto por milhares de trabalhadores (na sua maioria imigrantes), centrava-se sobre o jornal de língua alemã “Arbeiter-Zeitung”, editado por August Spies.

O surgimento dessas organizações anarco-sindicalistas e de sindicalismo revolucionário também está relacionado ao que muitos percebiam como um esgotamento da estratégia eleitoral. Na segunda metade do século XIX, muitos socialistas foram eleitos para cargos em câmaras, mas não obtiveram nenhum sucesso pela via eleitoral. Centenas de socialistas, nos EUA, abandonaram seus partidos e rejeitaram a via eleitoral – tida como um meio para a proteção dos privilégios das classes ricas.

Em sua convenção nacional de 1884, em Chicago, a Federation of Organized Trades and Labor Unions proclamou a luta pela jornada de 8 horas como pauta central. Outros grupos reformistas, como os Knights of Labor, apoiaram a pauta, mas muitos anarquistas a consideravam amena demais. Mesmo assim, os anarco-sindicalistas de Chicago apoiaram os movimentos pela jornada de 8 horas. Em parte, isso reflete a posição sindicalista de intenção revolucionária de usar pautas reformistas para promover uma discussão mais ampla sobre trabalho, capitalismo, e revolução. A estratégia revolucionária se baseava na ideia de que operações bem sucedidas contra a polícia e a tomada dos meios de produção em centros industriais resultariam num apoio em massa dos trabalhadores, levando à revolução social. Na convenção de 1884, a Federation of Organized Trades and Labor Unions havia proclamado que, a partir de 1886, o 1º de Maio seria a data em que a jornada de 8 horas se tornaria padrão.

Quando a data se aproximou, sindicatos e organizações de trabalhadores chamaram uma greve geral. Um panfleto convocando para o ato em Chicago dizia:

-Trabalhadores às armas!
-Guerra ao Palácio, paz às choupanas, e Morte ao ÓCIO LUXURIOSO
-O sistema de salários é a causa única da miséria do Mundo. É apoiado pela classe rica, e, para destruí-lo, devemos forçá-los a trabalhar ou MORRER
-Uma libra de DINAMITE é melhor do que alqueire de URNAS
-FAÇA SUA DEMANDA DE 8 HS POR DIA com armas nas mãos para encarar os cães-de-guarda do Capital, a Polícia e as milícias, da maneira apropriada

Os anarquistas sabiam, por experiência própria, que os patrões e a Polícia jamais permitiriam que esse movimento avançasse. 10 anos antes, em uma greve de trabalhadores das ferrovias, a Polícia atirou contra os grevistas, ferindo centenas e matando dezenas. Mesmo Kropotkin, costumeiramente tido como pacifista, quando juntou-se aos anarquistas de Berna em uma marcha em 1877, levou socos-ingleses e outras armas para se defender da Polícia, e entrou em confronto nas ruas.

Em 1º de Maio de 1886, 300.000 pessoas saíram de seus postos de trabalho nos EUA, na primeira celebração do 1 de Maio na história operária. Em Chicago, 40.000 trabalhadores entraram em greve, aliando-se aos anarquistas, ouvindo discursos inflamados e se juntando em ação direta. Nos dias seguintes, os números aumentaram, mas a paz se manteve. Foi só no dia 3 de Maio de 1886 que os conflitos iniciaram, focados na McCormick Reaper Works. A polícia atacou os manifestantes, que responderam com pedras; a contra-resposta foi na base da bala. Pelo menos dois grevistas foram mortos, e o número de feridos é desconhecido.

Os anarco-sindicalistas convocaram uma reunião para o dia seguinte, 4 de Maio, no Haymarket Square, para discutir a brutalidade policial. O clima chuvoso diminuiu o número de participantes para 3.000. August Spies proferiu um discurso que o prefeito de Chicago, presente no local, diria depois não fazer nenhuma sugestão de violência. Os manifestantes estavam calmos e em ordem. Conforme o discurso ia acabando, dois detetives correram até onde estava a maioria dos policiais, dizendo que um dos oradores estava incitando os manifestantes contra a Polícia. A polícia começou a dispersar os manifestantes.

Uma bomba foi lançada contra a polícia. Ninguém sabe de onde veio a bomba.

Existem várias teorias sobre quem lançou a bomba. Alguns dizem ter sido um anarquista na multidão; outros, um agente provocador. Um policial morreu, e outros sete morreriam nos dias seguintes. Evidências posteriores sugeriram que esses sete foram vítimas das balas da própria polícia. Oito anarquistas – Albert Parsons, August Spies, Samuel Fielden, Oscar Neebe, Michael Schwab, George Engel, Adolph Fischer, e Louis Lingg – foram acusados de terem produzido e lançado a bomba, e foram presos. Desses, apenas três estavam em Haymarket no dia.

Um júri composto por patrões e seus representantes condenou Parsons, Spies, Engel, e Fisher à morte. Louis Lingg se matou na cadeia, no dia 10 de Novembro de 1887, em um ato final de rebelião, engolindo um artefato explosivo. No dia seguinte, Parsons, Spies, Engel, e Fisher foram enforcados. Nos anos seguintes, os patrões, o Estado, e a mídia organizaram uma campanha para associar o anarquismo à violência. A imagem do anarquista com uma bomba em uma mão e uma adaga em outra se formou ali, e o socialismo passou a ser considerado “anti-americano”.

No 20 de junho de 1889, a segunda Internacional Socialista, reunida em Paris, decidiu convocar anualmente uma manifestação com o objetivo de lutar pela jornada de 8 horas de trabalho. A data escolhida foi o primeiro dia de maio, como homenagem às lutas sindicais de Chicago. Em 1º de maio de 1891, uma manifestação no norte de França foi dispersada pela polícia, resultando na morte de dez manifestantes. No mesmo ano, Errico Malatesta retornou para a Itália e organizou uma manifestação em memória aos Mártires de Haymarket. Milhares de anarquistas se juntaram às manifestações; o chefe de polícia diria que “a chegada da Federazione Anarchica estimulou imediatamente a excitação da massa”. Galileo Palla, que havia sido exilado com Malatesta na Argentina, tomou o palanque naquela tarde e incitou a multidão a se revoltar, proferindo “lunga vita alla rivoluzione”. Os confrontos com a polícia se estenderiam por toda a noite e por toda a cidade de Roma.

A história do 1º de Maio é também uma história de disputa de narrativas. Em 1894, em Cleveland, o prefeito decretou um feriado, em uma tentativa de esvaziar a luta. O presidente da AFL, um sindicato pelego, apoiou a iniciativa. Durante a década de 1890, diversas tentativas ocorreriam de organizar atos do 1º de Maio no Brasil, quase sempre frustradas ou reprimidas por prisões. Por aqui o Estado rapidamente tentou esvaziar o 1º de Maio em sua radicalidade: em 1902, um projeto foi enviado para a Câmara dos Deputados que tornaria o 1 de Maio feriado nacional. O discurso da imprensa muda imediatamente; publicou-se no Diário da Tarde, de Curitiba, em 1902:

Cônscios de que representavam uma força poderosa, procuraram os operários unir-se, congregar-se sob a égide brilhante do amor e da paz, e, qual novos cruzados, caminham desassombradamente à conquista da Jerusalém do futuro. Para as almas exaustas de sofrimento, a esperança é o bálsamo suavizador por excelência. Aí esse anseio, esta alegria sã, que emana de todos os corações, no dia de hoje, florescidos como uma promessa de um futuro de absoluta justiça

No começo do século XX, antes do boom do anarco-sindicalismo brasileiro, ocorreram “cortejos operários” no 1º de Maio. Esses cortejos eram animados por bandas de música, com queima de fogos de artifício, o que conferia um ar festivo às comemorações operárias. Os anarquistas fariam críticas ferrenhas a esses movimentos, por considerarem que esvaziavam o aspecto de luta do 1º de Maio – prefigurando os sorteios de carro e comícios organizados pelas centrais sindicais nas décadas de 1980 e 1990. Na edição 15 do jornal anarquista “A Greve”, comentando o 1º de Maio de 1902 no RJ, lê-se: “regozijou a imprensa burguesa com o fato dos festejos do primeiro de maio assumirem um caráter francamente carnavalesco, e felicitou o operariado desta cidade por ter solenizado a significativa data de maneira tão ridícula e deprimente. Confrangeu-nos o coração vermos tantos homens servirem de instrumentos inconscientes a uma detestável mascarada”.

Até que nossas exigências mais fantásticas sejam satisfeitas, a fantasia sempre estará em guerra com a realidade

Ela sequestra aulas de história e funerais, arma emboscadas para secretárias no caminho para a máquina de café, transforma trilhos em tobogãs e shopping centers em parquinhos — ela deixa a vida girando fora de controle. Diretores de cinema tentam aproveitá-la, agentes de viagens tentam vendê-la, partidos políticos tentam recrutá-la; mas a fantasia, assim como aqueles que a buscam sinceramente, não serve a
nenhum senhor.

Agora que todos os continentes foram conquistados e todas as terras exploradas, nada é mais precioso do que passagens para novos mundos. Fés produzidas em massa são assombradas por milhares de sonhos de fuga — e a ilusão tece melhores asas para a juventude ansiosa por voar do que o pragmatismo jamais ofereceu aos nossos ancestrais.

Como revolucionários, é claro que estamos lutando pelos nossos sonhos! Quando não podemos aguentar mais uma hora disto, tomamos o partido dos momentos em que surpreendemos a nós mesmo, dos lampejos em que tudo parece possível, experiências intensas que podem durar só alguns instantes — e portanto de todo impulso reprimido, prazer proibido, sonho inexplorado, todas as canções sufocadas que, livres, poderiam criar uma reviravolta jamais vista. E depois, quando a poeira assentar, vamos tomar o seu partido de novo.

Chame isto de escapista — talvez seja; mas que tipo de pessoa é mais assombrado pela ideia de escapar? Prisioneiros. Certo ou errado, egoísta ou generoso, possível ou impossível, nós vamos sair daqui.

O convite a um novo mundo pode levar uma vida ou mais para se estender; o status autoimposto de excluídos pode ser estabelecido de forma a receber as transmissões, para dar o solo no qual as sementes possam brotar. Aquele que fizer isso não está se arremessando da vida no final das contas, mas dando a ela uma porta de entrada — silenciosamente metabolizando o lixo do velho mundo para o novo, assim como outros “parasitas” fazem.

Alguma vez já reclamamos de sermos malcompreendidos, injustiçados ou ignorados? Esse destino é o que nos diferencia: nós não nos levaríamos suficientemente a sério se desejássemos que fosse de outro modo. Tudo o que é grandioso acontece longe do mercado e da fama; inventores de novos valores e arquitetos de novos paradigmas sempre se esconderam nas margens, passaram fome nos guetos, agiram nas sombras. Ainda não há espaço nas ruas ou nos jornais para os pacotes que temos para entregar.

Mas cuidado — se não forem postas em prática, as fantasias podem se
tornar vampiros que sugam a vida de seus hospedeiros; elas podem um dia servir a outros, mas elas só podem contribuir para a submissão
daqueles que nunca ousaram realizá-las.

Espere resistencia