Fuck off Google

(Publicado originalmente como um capítulo do livro do Comitê Invisível “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição”. N-1 Edições, São Paulo. 2015)

 

1. NÃO HÁ “REVOLUÇÕES FACEBOOK”, MAS UMA NOVA CIÊNCIA DE GOVERNO, A CIBERNÉTICA

Poucos conhecem a genealogia e, no entanto, vale a pena conhecê-la: o Twitter provém de um programa denominado TXTMob, inventado por ativistas norte-americanos para, através do celular, se organizarem durante as manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano de 2004. Esse aplicativo foi então utilizado por umas cinco mil pessoas, que partilhavam em tempo real informações sobre as ações em curso e os movimentos da polícia. O Twitter, lançado dois anos mais tarde, foi utilizado para fins similares, por exemplo, na Moldávia. As manifestações iranianas de 2009, por sua vez, popularizaram a ideia de que ele seria a ferramenta necessária para coordenar os insurgentes, em particular contra as ditaduras. Em 2011, quando as revoltas atingiram uma Inglaterra que pensávamos definitivamente impassível, os jornalistas fabularam, e com lógica, que os tweets haviam facilitado a propagação dos motins a partir de seu epicentro, Tottenham. Acontece que, devido às suas necessidades de comunicação, os insurgentes começaram a utilizar os BlackBerry, celulares seguros projetados para o alto escalão de bancos e de multinacionais, e dos quais os serviços secretos ingleses não tinham sequer as chaves de decodificação. Um grupo de hackers chegou a piratear o site da BlackBerry para dissuadi-la de cooperar com a polícia. Se dessa vez o Twitter permitiu uma auto-organização, foi mais a do grupo de cidadãos-varredores que resolveu limpar e reparar os danos causados pelos confrontos e saques. Essa iniciativa foi coordenada pela Crisis Commons: uma “rede global de voluntários que trabalha em conjunto para construir e utilizar ferramentas tecnológicas que ajudem a responder a desastres e que melhorem a resiliência e a resposta a crises.” Na época, um jornalzinho da esquerda francesa comparou tal iniciativa com a organização da Puerta del Sol durante o movimento dito “dos indignados”. O amálgama entre uma iniciativa que visa a acelerar o regresso à ordem e o fato de milhares de pessoas se organizarem para viver numa praça ocupada, apesar das constantes investidas da polícia, pode parecer absurdo. A não ser que se veja aqui apenas dois gestos espontâneos, conectados e cidadãos. Desde o 15-M, os “indignados” espanhóis, pelo menos uma parte não negligenciável deles, invocaram sua fé na utopia da cidadania conectada. Para eles, as redes sociais virtuais não haviam apenas acelerado a propagação do movimento de 2011, elas haviam, também e sobretudo, lançado as bases de um novo tipo de organização política, para a luta e para a sociedade: uma democracia conectada, participativa, transparente. É sempre deplorável, para “revolucionários”, partilhar uma ideia dessas com Jared Cohen, o conselheiro para antiterrorismo do governo norte-americano que contatou e pressionou o Twitter durante a “revolução iraniana” de 2009 para manter seu funcionamento apesar da censura. Recentemente, Jared Cohen escreveu com seu ex-patrão do Google, Eric Schmidt, um livro político paralisante, “A nova era digital”. Já nas primeiras páginas pode-se ler esta ótima frase para alimentar a confusão quanto às virtudes políticas das novas tecnologias de comunicação: “A internet é o maior experimento envolvendo anarquia da história.”

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Capitalismo de vigilância e tecnopolíticas do desejo

O Grande Irmão encontra Helmholtz Watson

No clássico “1984”, George Orwell apresenta uma distopia em que os cidadãos estão sempre sendo vigiados pelo Grande Irmão. Em uma releitura imaginativa do que Foucault chamaria de “Panóptico“, os cidadãos de Oceania estão sob constante vigilância, ou comportam-se como tal. Assim, em uma sociedade disciplinar, a onipresença das tecnologias de vigilância fazem com que os indivíduos se auto-censurem, mesmo que ninguém esteja vendo as câmeras. Os indivíduos internalizam o Grande Irmão.

O filósofo francês Gilles Deleuze assinala a mudança das tecnologias de vigilância na transição da sociedade disciplinar para sociedade de controle. Na sociedade disciplinar, a ideia de vigilância remetia ao confinamento e à restrição do movimento físico dos indivíduos no espaço. Vigiar era olhar e regular os passos dos indivíduos. Na transição para a sociedade de controle, com a explosão das comunicações, vigiar é fuçar mensagens, interceptar, ouvir, interpretar. Da câmera passamos aos dados.

Em uma carta já famosa endereçada a Orwel, Aldous Huxley – o escritor de outra distopia famosa da ficção científica, “Admirável Mundo Novo” – apontava que achava sua visão do futuro – uma sociedade controlada por atratores de desejo, que esvaziam os desejos mais radicais e os transformam em seu contrário – mais provável do que a sociedade baseada na violência exposta por Orwell. “Ainda na próxima geração, acedito que os comandantes deste mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, do que clubes e prisões, e que a sede de poder pode ser tão completamente satisfeita sugerindo que as pessoas amem sua servidão quanto chicoteando-as e chutando-as para que obedeçam”

É profundamente irônico que o capitalismo contemporâneo tenha encontrado como solução um misto de Orwell e Huxley: o capitalismo de vigilância.

 

Capitalismo de vigilância

Deleuze nos lembra que enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo que se expande junto às redes de informação. A passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à imagem a potencialidade da informação, deslocamos a abordagem do campo de representação, passando a compreendê-la enquanto a própria expressão dos acontecimentos.

As tecnopolíticas da sociedade de controle fazem com que os indivíduos tornem-se separados, distintos, divididos, cindidos: “Já não nos encontramos lidando com o par massa / indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’ e massas, amostras, dados, mercados ou ‘bancos’“.

Onde se encontra a vigilância nesse movimento? A acadêmica Shoshana Zuboff criou o termo “capitalismo de vigilância” para descrever a nova configuração do capitalismo que monetiza dados adquiridos por vigilância. Recentemente, foi revelado que a concessionária da linha amarela do metrô de São Paulo instalou portas interativas digitais nas estações Luz, Pinheiros e Paulista. Por causa disso, sem escolha, os indivíduos entregam dados pessoais no metrô de São Paulo diariamente: as portas filmam os rostos de passageiros e procuram adivinhar as emoções sentidas no momento. A ideia é que isso ajude a categorizar os usuários e o metrô possa exibir propagandas de maneira eficiente.

Zuboff contrapõe a vigilância estatal, que objetiva o controle dos indivíduos e a identificação de pessoas específicas – típico das sociedades disciplinares – à vigilância do capitalismo. A metáfora do Big Brother foi substituída pelo Big Other.

No capitalismo de vigilância, a vigilância constante de nossos pensamentos, desejos, e ações, principalmente na Internet, combinada com análise de algoritmos por inteligência artificial resulta na previsão e manipulação de nossos desejos para a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. “Em seu cerne, o capitalismo de vigilância é parasita e auto-referencial. Revive a velha imagem de Karl Marx do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas com uma guinada inesperada. Ao invés de se alimentar do trabalho, o capitalismo de vigilância de alimenta de todos os aspectos da experiência humana”. As ferramentas do capitalismo de vigilância – e não estamos falando só do Google e do Facebook, mas de uma lógica pervasiva que atravessa todas as nossas relações online e, cada vez mais, offline – nos dessensibiliza para a destruição progressiva da autonomia individual e coletiva, da liberdade de pensamento e ação, da privacidade, e da memória, ao mesmo tempo em que demanda que as corporações e a classe rica tenham direitos absolutos.