O Deus Dividido – Análise dos eventos em Hong Kong pelo grupo anticapitalista 闯 [Chuǎng]

O texto abaixo foi publicado recentemente pelo grupo Chuang, um coletivo de publicação de vertente anticapitalista que se propõe analisar criticamente os elementos do Capitalismo de Estado chinês. Da descrição do site:

Chuǎng: A imagem de um cavalo rompendo um portão. Significado: Libertar-se; atacar, carregar; arrombar, forçar a entrada ou saída; agir impetuosamente. 闯关 (chuǎngguān): executar um bloqueio. 闯座 (chuǎngzuò): assistir a um banquete sem ser convidado.

Ao longo das últimas três décadas, a China transformou-se de uma economia isolada, planejada pelo Estado, em um pólo integrado de produção capitalista. Ondas de novos investimentos estão remodelando e aprofundando as contradições da China, criando bilionários como Ma Yun, enquanto os milhões abaixo – aqueles que cultivam, cozinham, limpam e montam sua infra-estrutura eletrônica – lutam para escapar dos destinos de trabalho sem fim. Mas à medida que a rica festa da China se torna cada vez mais luxuosa, os pobres começam a bater às portas do salão de banquetes. 闯 é o movimento repentino quando o portão é quebrado e as possibilidades de um novo mundo emergem para além dele.

O texto é uma análise das contradições dos atos em Hong Kong que ocorreram primariamente na segunda metade de 2019 e sua relação com a geopolítica do Capitalismo Mundial Integrado. Não se pretende ser a análise final, mas, diferente de uma parte razoável das análises que encontramos nas mídias anticapitalistas ocidentais, é uma perspectiva geopolítica, não se furtando de observar as contradições presentes nos atos. Oferecemos essa tradução como uma maneira de iniciar 2020 ampliando o debate sobre insurreição, niilismo, bloqueio, e anticapitalismo.

Continue reading “O Deus Dividido – Análise dos eventos em Hong Kong pelo grupo anticapitalista 闯 [Chuǎng]”

Uma leitura anarquista da interseccionalidade

A palavra “interseccionalidade” têm sido utilizada com frequência em meios de Esquerda, muitas vezes sem reflexão apropriada em relação aos seus significados, e sem uma relação real com a prática diária de construção de emancipações. Atestando à incrível capacidade de Recuperação/cooptação do Capitalismo contemporâneo, o termo é amplamente utilizado em vertentes liberais do feminismo para fazer referência a uma suposta equivalência das opressões. Esse conceito é, muitas vezes, utilizado de maneira superficial e errônea – acompanhando o apagamento do protagonismo de mulheres negras e trans, e uma definição vazia de lugar de fala que é compreendida como “só eu posso falar disso”, ao invés de uma leitura materialista dos marcadores sociais da diferença. Essa discussões emergem em um momento em que a Esquerda – inclusive os anarquistas – parecem mergulhados em um debate sem fim sobre “economicismo” vs. “identitarismo”. O que propomos aqui é um retorno à história do anarquismo – e, principalmente, do anarcafeminismo -, bem como a incorporação de conceitos e estratégias produzidas pelo anarquismo decolonial, para buscarmos a ressignificação (desvio?) do conceito de interseccionalidade.

Continue reading “Uma leitura anarquista da interseccionalidade”

Fuck off Google

(Publicado originalmente como um capítulo do livro do Comitê Invisível “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição”. N-1 Edições, São Paulo. 2015)

 

1. NÃO HÁ “REVOLUÇÕES FACEBOOK”, MAS UMA NOVA CIÊNCIA DE GOVERNO, A CIBERNÉTICA

Poucos conhecem a genealogia e, no entanto, vale a pena conhecê-la: o Twitter provém de um programa denominado TXTMob, inventado por ativistas norte-americanos para, através do celular, se organizarem durante as manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano de 2004. Esse aplicativo foi então utilizado por umas cinco mil pessoas, que partilhavam em tempo real informações sobre as ações em curso e os movimentos da polícia. O Twitter, lançado dois anos mais tarde, foi utilizado para fins similares, por exemplo, na Moldávia. As manifestações iranianas de 2009, por sua vez, popularizaram a ideia de que ele seria a ferramenta necessária para coordenar os insurgentes, em particular contra as ditaduras. Em 2011, quando as revoltas atingiram uma Inglaterra que pensávamos definitivamente impassível, os jornalistas fabularam, e com lógica, que os tweets haviam facilitado a propagação dos motins a partir de seu epicentro, Tottenham. Acontece que, devido às suas necessidades de comunicação, os insurgentes começaram a utilizar os BlackBerry, celulares seguros projetados para o alto escalão de bancos e de multinacionais, e dos quais os serviços secretos ingleses não tinham sequer as chaves de decodificação. Um grupo de hackers chegou a piratear o site da BlackBerry para dissuadi-la de cooperar com a polícia. Se dessa vez o Twitter permitiu uma auto-organização, foi mais a do grupo de cidadãos-varredores que resolveu limpar e reparar os danos causados pelos confrontos e saques. Essa iniciativa foi coordenada pela Crisis Commons: uma “rede global de voluntários que trabalha em conjunto para construir e utilizar ferramentas tecnológicas que ajudem a responder a desastres e que melhorem a resiliência e a resposta a crises.” Na época, um jornalzinho da esquerda francesa comparou tal iniciativa com a organização da Puerta del Sol durante o movimento dito “dos indignados”. O amálgama entre uma iniciativa que visa a acelerar o regresso à ordem e o fato de milhares de pessoas se organizarem para viver numa praça ocupada, apesar das constantes investidas da polícia, pode parecer absurdo. A não ser que se veja aqui apenas dois gestos espontâneos, conectados e cidadãos. Desde o 15-M, os “indignados” espanhóis, pelo menos uma parte não negligenciável deles, invocaram sua fé na utopia da cidadania conectada. Para eles, as redes sociais virtuais não haviam apenas acelerado a propagação do movimento de 2011, elas haviam, também e sobretudo, lançado as bases de um novo tipo de organização política, para a luta e para a sociedade: uma democracia conectada, participativa, transparente. É sempre deplorável, para “revolucionários”, partilhar uma ideia dessas com Jared Cohen, o conselheiro para antiterrorismo do governo norte-americano que contatou e pressionou o Twitter durante a “revolução iraniana” de 2009 para manter seu funcionamento apesar da censura. Recentemente, Jared Cohen escreveu com seu ex-patrão do Google, Eric Schmidt, um livro político paralisante, “A nova era digital”. Já nas primeiras páginas pode-se ler esta ótima frase para alimentar a confusão quanto às virtudes políticas das novas tecnologias de comunicação: “A internet é o maior experimento envolvendo anarquia da história.”

Continue reading “Fuck off Google”