Introdução ao apoio mútuo

 

Na prática do apoio mútuo, que remonta aos primeiros passos da evolução, encontramos a origem evidente e indubitável de nossas concepções éticas; e podemos afirmar que, no progresso ético do homem, o apoio mútuo — e não a luta de uns contra os outros — tem o papel principal. Em seu avanço, mesmo no momento presente, vemos também a melhor garantia de uma evolução ainda mais grandiosa de nossa espécie.

Pyotr Kropotkin, “Apoio mútuo: Um fator da evolução”

No pensamento Akan, do sul de Gana, a comunidade é representada por um “crocodilo siamês” com duas cabeças, mas apenas um estômago. O estômago comum dos dois crocodilos indica que os interesses básicos de todos os membros da comunidade são idênticos. Portanto, pode ser interpretado como simbolizando o bem comum, o bem de todos os indivíduos dentro de uma sociedade.

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No pensamento Akan, o bem comum não é um substituto para a soma dos vários bens individuais. Ele não consiste ou deriva dos bens e preferências de determinados indivíduos. Existe um provérbio Akan que diz: Obra ye nnoboa. Nnoboa significa “ajudar uns aos outros a trabalhar na fazenda”. Nas comunidades rurais de Gana, quando um agricultor percebe que o trabalho na fazenda não pode ser concluído dentro de um certo tempo se ele o fizesse sozinho, ele solicita a ajuda e o apoio de outros agricultores da comunidade. Os outros agricultores prontamente ajudam a esse agricultor, que, desta forma, completa sua produção dentro do prazo. O mesmo pedido seria, quando necessário, feito pelos outros fazendeiros em diferentes ocasiões.

Assim, obra ye nnoboa significa a vida é apoio mútuo.

Na nossa sociedade contemporânea, esse valor parece ter sido perdido. Estamos cada vez mais em-si-mesmados, atomizados, presos em nossos universos particulares. “Se os homens se
transformaram em escorpiões que picam a si mesmos e aos outros, não será afinal
porque nada aconteceu e os seres humanos de olhos vagos e cérebro murcho se
tornaram misteriosamente sombras de homens, fantasmas de homens, e até certo ponto,
nada mais têm de homens além do nome?” (Raoul Vaneigem, “A Arte de Viver para as Novas Gerações”). Nessa sociedade em que estamos isolados, encontrar uns aos outros e compartilhar uma vida diferente é algo revolucionário:

“Fomos criados em uma cultura de isolamento e derrota, onde nosso potencial é reduzido para atender às demandas da economia. Enterrados sob nossas próprias preocupações pessoais, nossas próprias contas e nossos próprios medos, somos obrigados a olhar apenas par anós mesmos. Mas somos capazes de uma vida diferente.

Para começar, elimine o isolamento. Corte as besteiras. Volte-se para as pessoas mais próximas e diga que precisa de uma vida em comum. Pergunte como seria enfrentar o mundo juntos. O que você tem? O que você precisa? Faça um inventário de suas habilidades, capacidades e conexõe scoletivas. Tome decisões que aumentem sua força. Estabeleça a base para uma vida em comum” – Inhabit, “Habitar: Instruções para a autonomia”

Para superar a crise e construir o futuro, um outro fim do mundo, precisamos fortalecer as resistências da vida cotidiana: essas ações que tomam lugar fora das organizações oficiais da política (partidos, sindicatos, grupos religiosos, grupos de base, etc.) e do olhar do Estado, e que mostram que existem muitas formas de vida além dessas formas organizacionais que expressam a potência coletiva. Alguns chamam a essas resistências de “o Comum”. Os autonomistas chamam de “auto-atividade” ou “auto-valorização”. Os anarco-comunistas identificam-nas com o apoio mútuo.

 

O que é apoio mútuo?

Apoio mútuo é um termo que quer dizer o intercâmbio recíproco de recursos e ações de ajuda para o benefício mútuo daqueles envolvidos no processo. É, portanto, uma forma de participação (anti)política na qual as pessoas assumem a responsabilidade por cuidar umas das outras e por mudar as condições políticas sem intermediários, sem algum vereador ou assessor ditando os rumos da mudança. Um outro nome para apoio mútuo, solidariedade, foi tão banalizado pelas igrejas e pelas grandes empresas que até perdeu seu sentido, mas implica em mutualidade:

“Ações de solidariedade são um meio de trazer amizades em potencial à existência, e tornando o mundo um lugar melhor no processo. Pois afinal, amigos nunca são demais, especialmente se você vive sob a ameaça da repressão estatal. Se você quer fugir do sistema de competição, no qual as pessoas só prosperam à medida que fazem os outros sofrer, a sua vida vai depender das redes de amizade e ajuda mútua — e não existe maneira mais rápida para fazer amigos do que ajudar os outros. Cada um de nós tem um tipo de recurso que pode ser compartilhado — o que você tem que as outras pessoas precisam?” – Crimethinc., “Receitas para o Desastre”

Ainda que, historicamente, o apoio mútuo seja associado aos anarquistas (taí a citação de abertura desse capítulo que não nos deixa mentir), o próprio Kropotkin sustentou sua tese do “valor adaptativo” do apoio mútuo através da observação cuidadosa de comunidades de “selvagens” – o termo usado pelo pensamento colonialista do século XIX para se referir às formas-de-vida não-européias. Assim, Kropotkin reconhecia que o apoio mútuo não era uma invenção do anarco-comunismo, nem que era baseada na independência autônoma do Estado ou nos direitos dos trabalhadores. É claro que o apoio mútuo incorpora autonomia proletária e as estratégias do anarco-comunismo, mas não podemos esquecer que o apoio mútuo é e sempre será uma tradição não-ocidental. O apoio mútuo é a forma de vida indígena, autóctone; é o poder e a vitalidade preta, que sobreviverá à teoria anarco-comunista. Apoio mútuo não é uma teoria. É uma prática que as pessoas não-brancas têm praticado desde antes que suas comunidades fossem devassadas pelo colonialismo e pelo capitalismo.

 

Apoio mútuo não é caridade

É preciso ter cuidado com duas coisas quando se faz grupos de apoio mútuo: a cooptação pelas estruturas de poder, e o Complexo do Branco Salvador.

Não podemos permitir que o apoio mútuo seja cooptado por organizações sem fins lucrativos, brancos querendo subir o morro, ou outras pessoas “caridosas” que não se comprometem com um entendimento do apoio mútuo como uma prática realizada por indígenas, pretos, e amarelos há muito tempo. Claro, em uma sociedade fraturada e que caminha a passos largos para a destruição, o apoio mútuo é uma maneira de sobreviver, mas seu objetivo, nas comunidades tradicionais, sempre foi o de fazer a comunidade PROSPERAR. Pense nos Akan do sul de Gana: a cobra siamesa não representa a mera soma das individualidades, mas o bem comum, que é algo mais. Diferente da caridade, o apoio mútuo deve ser um compromisso em fazer com que as pessoas prosperem, não somente que sobrevivam.

É claro que, em tempos de crise e pandemia, aqueles que têm acesso a recursos, dinheiro, empregos estáveis, e um teto sobre suas cabeças vão oferecer essas coisas sob o nome de “apoio mútuo”. A não ser que essas pessoas estejam prontas para se comprometer com objetivos de longo prazo que vão além da crise atual, o que estão fazendo é caridade, ou o Complexo do Branco Salvador. O escritor nigeriano-americano Teju Cole escreveu sobre isso: “O Complexo Industrial do Branco Salvador não tem a ver com justiça. Trata-se de uma grande experiência emocional que legitima o privilégio”. E ainda: “O branco salvador apoia políticas brutais de manhã, funda instituições de solidariedade social à tarde e recebe galardões à noite.”

Não é que não existam pessoas bem-intencionadas que procuram nossas comunidades querendo nos apoiar. Mas essas pessoas devem ser responsabilizadas por não exercerem o apoio mútuo além de uma situação de emergência. Essas pessoas devem usar seu tempo, dinheiro, recursos, e privilégio para educar os outros sobre como e por que o apoio mútuo é um compromisso com a comunidade. Se você tem acesso a todos esses recursos, ótimo! Mas não ache que doar algum dinheiro em uma vakinha, ou fazer as compras para uma senhorinha uma ou duas vezes durante a pandemia é fazer apoio mútuo.

Lembre-se: o apoio mútuo representa um compromisso de longo prazo baseado em resultados viáveis que leva a comunidade para além de sua dependência do Estado capitalista e colonizador.

 

O apoio mútuo deve ter potencial transformador

Cada grupo de apoio mútuo terá seu conjunto de valores compartilhados, aquilo no qual acreditam e apóiam. Mas algumas coisas são importantes de serem pensadas a todo momento, e há um conjunto mínimo de valores que não pode se perder de vista!

Se o apoio mútuo é uma forma de quebrar o binômio dos que tem e dos que não tem, fica claro que ele precisa ser horizontal e participativo. Do contrário, é caridade, uma forma de amaciar os egos mais do que de produzir apoio e solidariedade reais. Participar é ser capaz de fazer propostas, tomar decisões, e repartir responsabilidades para concretizar uma ação não-mediada. O apoio mútuo, como experiência de um novo projeto de sociedade, é acima de tudo uma escola de participação (anti)política. Assim, o apoio mútuo é uma prática multiplicadora que se sustenta quando busca:

  • Despertar a autonomia das pessoas, a confiança em seu potencial coletivo, ajudando-as a construir as capacidades de que necessitam para resolver suas demandas e as de seus aliados;
  • Anunciar a autonomia, a liberdade, e o apoio mútuo como opostos à ganância, à competição, e à exploração capitalista, ao poder e à dominação;
  • Canalizar a rebeldia popular contra a injustiça e pré-figurar, na própria ação de apoio mútuo, uma sociedade livre, em que a produção e a reprodução sociais sejam orientadas pela lógica da dádiva, do jogo, e do amor;
  • Transformar a realidade das pessoas envolvidas no apoio mútuo, com conquistas em todos os campos e dimensões da vida.

Uma consequência fundamental da ideia de que o apoio mútuo deve ter potencial transformador é que apoio mútuo significa criar um compromisso de longo prazo com a comunidade. O apoio mútuo é baseado no controle pela comunidade, com os indivíduos ajudando uns aos outros a se libertar da opressão do capitalismo e da autoridade. Apesar da caridade e do realocamento temporário de recursos serem aspectos importantes do apoio mútuo em momentos de emergência, não é algo central ao método. Para tomar emprestada uma metáfora já bem gasta, apoio mútuo não é só dar o peixe, mas também ensinar a pescar e, eventualmente, a imaginar novos mundos.