Poder, hegemonia e a estratégia anarquista

O texto abaixo é uma tradução livre do texto “Empowering anarchy: Power, hegemony and anarchist strategy”, de Tadzio Mueller, publicado no livro Post-anarchism: A reader.

Prólogo: Anarqui-a/-stas/smo

Como definir algo que retira sua vitalidade do desafio à convenção, de uma convicção ardente de que o que está, está errado, e de uma tentativa ativa de mudar o que está no que o que poderia ser? As definições, por necessidade, tentar fixar o “significado” de algo, e implicam que eu, que faço a definição, teria o poder de identificar os limites do “anarquismo”, de dizer o que seria legitimamente anarquista. É provável que seja melhor, então, começar clarificando o que não é anarquismo: definitivamente, não é uma questão de etimologia do grego antigo, como em: “o prefixo “an-” ligado à palavra “-arquia” sugere que “anarquismo” significa…”; tampouco é uma questão de analisar os escritos de um ou outro homem branco já morto, um tipo de aproximação que deveria ler os livros escritos por eruditos como Kropotkin ou Proudhon, e iria então proclamar que a essência do anarquismo pode ser encontrada em um deles, ou uma combinação dos dois1; também não se trata, finalmente, de uma questão de continuidade organizacional com os rebeldes que foram mortos em Kronstadt ou com os anarquistas que lutaram na Guerra Civil Espanhola.

Isso não significa que uma aproximação histórica ao anarquismo não é relevante – somente que qualquer tentativa de buscar uma definição puramente histórica do anarquismo deve, em algum sentido, cometer um ato de violência intelectual contra as pessoas que atualmente vêem a si mesmas como anarquistas, inspiradas pelo anarquismo, ou como “socialistas libertárias”: a maioria dessas pessoas não leu Kropotkin, Bakunin, ou até mesmo os anarquistas contemporâneos como Murray Bookchin, ou não leram esses trabalhos antes de identificaram a si como anarquistas. Barbara Epstein tentou se reconciliar com essa relativa falta de “pureza ideológica” argumentando que o anarquismo de hoje não é propriamente o anarquismo ideológico, mas ao invés disso, uma coleção do que ela chama de “sensibilidades anarquistas” (Epstein, 2001: 4). Entretanto: ao sugerir que os anarquistas de hoje não são realmente anarquistas, mesmo se identificam-se como tal, Epstein comete precisamente o erro que os acadêmicos fazem quando falam sobre os ativistas, ou seja, definir a forma “correta” de fazer/ser/pensar, e então identificar as formas com as quais os ativistas divergem do “caminho verdaeiro” identificado pela elite intelectual 2.

Como podemos evitar esse tipo de “violência” definicional, mas ainda ter algo sobre o que falar – ou seja, algo que seja identificável como “anarquista”? Primeiro, sugiro, deixando que as pessoas que de fato se identificam como anarquistas, ou que reconhecem certas influências anarquistas em seu trabalho político, que falem e ajam por si próprias. Pois, se o anarquismo é algo hoje, não é um conjunto de dogmas e princípios, mas um conjunto de práticas e atos dentro dos quais certos princípios manifestam-se3. O anarquismo não é primariamente o que está escrito, mas o que é feito: é simultaneamente a negação das coisas como estão, a fúria que flui de ver o mundo pleno de opressão e injustiça, e a crença de que essa fúria não tem sentido se não se busca fazer algo diferente no aqui e agora. O que faz dessas práticas especificamente anarquistas aos olhos dos ativistas de hoje, é claro, varia de grupo para grupo, de pessoa para pessoa. Por hora, no entanto, irei entender as práticas anarquistas no reino da organização e expressão políticas como aquelas práticas que buscam conscientemente minimizar as hierarquias e fazer oposição às opressões em todos os campos da vida, um desejo que se manifesta de diversas formas organizacionais, como comunas, federações, grupos de afinidade, e estruturas que buscam o consenso4. Em outras palavras, o anarquismo é um grito não de negação5, mas de afirmação: é ir além da rejeição, é começar a criar uma alternativa, no presente, àquilo que levou ao grito em primeiro lugar (“política pré-figurativa”)6. Isso não significa dizer que as práticas anarquistas sempre alcançaram isso – na verdade, o corpo principal desse texto irá lidar com a questão de quais barreiras existem para que o anarquismo alcance seu próprio objetivo. Ao invés disso, é somente um quadro de referência amplo para a discussão do anarquismo, um quadro que será refinado conforme o texto se desenvolve.

Um aviso antes de começar a discussão: já que sugeri que é só permitindo que os anarquistas de hoje falem e ajam que podemos descobrir o que o anarquismo “realmente” é, fui forçado a me apoiar somente nos anarquistas que encontrei, e naqueles textos anarquistas que pude acessar eler, para coletar meus “dados”. Esses são, por diversas razões, principalmente da Europa e dos Estados Unidos. As questões que esses anarquistas enfrentam e que discutiremos nesse capítulo vêm desse contexto, e as respostas serão relevantes – se é que o serão – somente nesse contexto7.

 

Os anarquistas, hegemonia, e poder

Tendo sugerido o conteúdo do anarquismo, minha próxima questão é: onde o anarquismo pode ser encontrado? Para começar, não é sinônimo do movimento de crítica à globalização (ver abaixo, movimento de globalização), o mesmo a maior parte desse movimento. No entanto, porque muitos anarquistas estiveram muito engajados nesse movimento, muitos dos exemplos utilizados aqui serão retirados dessas mobilizações. O anarquismo também não é sinônimo do internacionalmente famoso (ou infame!) “black bloc”, ainda que várias das vozes daqui irão emanar de baixo de uma balaclava. Os anarquistas deverão, então, ser vistos como uma “rede submersa” de grupos, pessoas, e identidades (Melucci, 1989), como uma contra-comunidade (Gemie, 1994) que se envolve em mobilizações (p. ex., contra o Fundo Monetário Internacional) e taticas (p. ex., o black bloc), mas não se exaure nesses: as sub-culturas em que as pessoas estão tentando construir diferentes modos de vida, que se centram em cafés e okupas, grupos e indivíduos, que podem ser encontrados em Berlim ou Londres, Malaga ou Estocolmo – é lá que os anarquistas, e portanto o anarquismo, podem ser encontrados.

O anarquismo pode estar hoje de volta à agenda após algumas décadas em um ermo político, mas a sua existência está longe de ser tranquila, com desafios vindos “de fora”, do engajamento com as estruturas dominantes de poder, assim como de dentro, em termos da capacidade de se sustentar como uma sub-cultura/movimento. O primeiro desses problemas é que, de Seattle a Gênova, e agora com a “Guerra ao Terror”, os anarquistas descobriram-se do lado que apanha em uma repressão estatal rapidamente crescente sem ter quaisquer mecanismos efetivos para se defender contra esse massacre. Ligado a essa política de repressão está o desafio de cooptação dos grupos mais moderados dentro do movimento de globalização, deixando os anarquistas isolados nas margens radicais. Finalmente, o último problema é demonstrado pelo fato de que existem poucas pessoas com mais de 30 anos interessadas no anarquismo. Em outras palavras: a sub-cultura anarquista é atormentada por sua incapacidade de sustentar a participação, por seu tamanho e capacidades de mobilização limitados, por seu isolamento social, e pela vulnerabilidade à repressão que isso produz.

Esses desafios políticos foram amplamente discutidos dentro dos círculos anarquistas, e muitas propostas de solução emergiram, a maioria das quais pode ser sumarizada sob duas rubricas: elas se focam na necessidade primeiro de superar o isolamento da sub-cultura anarquista/libertária de Esquerda (organização extensiva); e em segundo lugar na necessidade de aprofundar as estruturas políticas e sociais da sub-cultura de maneira a reforçar sua capacidade de manter a participação, ou simplesmente: permitir às pessoas de, digamos, mais de 29 anos que vivam uma vida “anarquista” (organização intensiva).

Os anarquistas de hoje não são, obviamente, a primeira força radical a encontrar o problema de como manter sua força com o tempo e face a ataques, e como crescer para além de sua força atual. Cerca de 80 anos atrás, Antonio Gramsci, o estrategista do Partido Comunista Italiano, fez-se essas mesmas questões – e chegou a uma análise das estruturas de poder em um capitalismo avançado que, creio, fazem dele uma importante pedra-de-toque para qualquer projeto de resistência que opera sob essas condições. Seu ponto de partida era: por que a revolução foi bem-sucedida na Rússia, e não na Itália, ou em qualquer lugar da Europa Ocidental, onde o marxismo clássico preveu que iria ocorrer, devido ao desenvolvimento mais avançado do capitalismo? Ele argumentou que a razão para essa falha era um entendimento incorreto do funcionamento do poder no capitalismo moderno: enquanto a prática revolucionária marxista assumiu que o poder político estava concentrado nos aparatos de Estado, Gramsci sugeriu que o poder também se apoiava sobre as instituições da “sociedade civil” (Gramsci, 1971: 210-276), ou nas estruturas e organização da vida cotidiana. A revolução deveria, portanto, mirar não só na conquista do poder estatal, mas, mais importante, na criação de uma sociedade civil alternativa, que deveria ser capaz de atrair a maioria das pessoas pelo convencimento da validade do projeto, que por sua vez tinha como premissa sua capacidade de desempenhar “todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade” (ibid.: 16). Essa sociedade alternativa viria a ser chamada de “contra-hegemonia”8, um termo que eu traduziria como “comunidades sustentáveis de resistência”. A chave para a análise de Gramsci, portanto, era a sugestão de que a organização da resistência deveria de alguma forma espelhar as estruturas de poder.

Qual a relevância disso para a prática anarquista? Primeiro, a sociedade alternativa de Gramsci deve envolver a organização política tanto extensiva quanto intensiva, como sugerido nas propostas citadas acima: extender o apelo do anarquismo/comunismo abrindo-o para outros grupos e indivíduos9, e aumentar a sustentabilidade da sub-cultura anarquista/comunista fortalecendo suas funções sociais. Existe, entretanto, um grande problema envolvido no transporte desse conceito à prática anarquista: Gramsci era um leninista, e assim não achava que uma estratégia anti-capitalista que envolvesse hierarquias internas e externas fosse problemática. Tratava-se, em essência, de jogar um poder contra outro. Isso claramente cria um problema para os anarquistas, se entendemos o anarquismo como a luta contra todas as formas de hierarquia e poder. Se (1) uma estratégia de contra-hegemonia, de construir comunidades sustentáveis, é em essência uma estratégia de poder, e (2) se o anarquismo é entendido como rejeitando todas as formas de poder, e (3) a estratégia delineada aqui em seus termos mais crus (expansão interna e externa) é necessária para sustentar o projeto radical do anarquismo, então será que alcançamos o fim do anarquismo como projeto político? Será que o anarquismo como rejeição de hierarquias e poder está morto, porque precisa das hierarquias e do poder para sobreviver?

 

Anarquismo, partes 1 e 2

1. Nenhum poder para ninguém!

A questão então torna-se: será que o anarquimo é realmente a rejeição de todas as formas de poder? A dificuldade óbvia dessa questão encontra-se na palavra “realmente”: porque, se é verdade que o anarquismo não é um corpo unificado de teorias, mas sim um conjunto de práticas, torna-se difícil entender qualquer coisa que o anarquismo “realmente” seja. Uma olhada em um panfleto escrito por qualquer grupo anarquista normalmente irá revelar a coexistência de uma série de posições conceituais, algumas das quais podem até mesmo ser mutuamente contraditórias. Assim, para separar os diversos “fios” existentes no discurso anarquista, será necessário se engajar com o anarquismo como um conjunto de práticas criadas historicamente, no final das contas, ou seja: analisar criticamente as diversas ideias e discursos que criaram as práticas atuais.

O anarquismo se desenvolveu, até certo sentido, tanto paralelamente quanto em oposição ao Marxismo, e alguns dos princípios que o guiam podem ser melhor ilustrados como uma crítica da teoria marxista. Esta argumentava que toda a opressão derivava fundamentalmente de uma fonte, ou seja, o controle dos meios de produção. Era capaz de sugerir, portanto, que se o proletariado primeiro tomasse as rédeas do Estado (que era entendido meramente como estrutura de suporte do poder da classe capitalista) e então socializasse os meios de produção em um único golpe, poderia oferecer a libertação de todas as formas de opressão. Para o Marxismo, havia apenas um inimigo, uma luta, e uma vitória final e completa. Em resposta, os anarquistas argumentavam que a opressão fluía não somente do controle dos meios de produção, mas também do controle dos meios de coerção física – em outras palavras, o Estado era um centro de poder cujos interesses não eram totalmente redutíveis àqueles do “capital” (Miller, 1984: 47-49). Isso criou um problema para os anarquistas, já que sua identificação de pelo menos dois inimigos, Capital e Estado (e frequentemente a Igreja também (Marshall, 1992: 4-5)), dividiu o campo político, criando dificuldades em termos de (1) quem era o agente privilegiado da revolução, e (2) como essa revolução poderia acontecer de uma única vez se haviam tantos centros de poder, tantos inimigos, tantas lutas. A primeira questão era fácil de responder pelo Marxismo, ou por qualquer análise que operasse pela noção de que há uma fonte principal/central de conflito social, porque a parte oprimida dessa relação (concretamente: o proletariado na relação trabalho-capital) torna-se o agente necessário da revolução, mas é uma questão difícil para uma análise que identificava uma difusão de centros de poder. De maneira similar, para essa posição, a resposta à segunda questão aparentemente deve ser “de maneira alguma”.

Uma vertente do anarquismo, provavelmente aquela mais identificada com homens brancos mortos como Bakunin, Kropotkin, e Proudhon, respondeu a isso rompendo com a unidade do poder/opressão e a subsequente difusão das lutas simplesmente reconstituindo a unidade de poder em um nível mais alto. Onde antes a contradição entre capital e trabalho era primordial, a nova contradição-chave passou a ser aquela entre uma natureza humana/sociedade benignas e uma lógica inequivocamente ruim de opressão meramente se manifestando em diferentes estruturas de poder (capitalismo, o estado, religião)(Marshall, 1992: 4). Esse pressuposto no centro do que irei chamar de vertente “clássica” do anarquismo tem importantes implicações político-teóricas: tendo postulado uma essência humana pura em constante conflito contra as forças que buscam oprimi-la, mantém-se a possibilidade de que a prática anarquista leve à liberação total do poder após algum tipo de revolução. Essa conclusão é baseada em uma concepção de poder como algo externo à essência humana, vindo das instituições que se impõem a uma humanidade organicamente livre (Newman, 2001: 37).

E, de fato, muitos dos anarquistas de hoje referem-se diretamente a essa visão dicotômica da sociedade quando fazem análises políticas. Em um ensaio escrito sobre os protestos de Gênova, Moore afirma que, para os anarquistas, “o poder (seja ele ecnômico ou governamental) é o problema – não quem o controla – e precisa, portanto, ser superado completamente” (Moore, 2001: 137). E, para mostrar que essa questão não se manifesta somente nos escritos dos anarquistas, mas também na prática: em um encontro no acampamento “No Border”, de inspiração extensamente anarquista, em Estrasburgo, em Julho de 2002, eu testemunhei uma discussão sobre como organizar os banheiros do acampamento, em que alguém sugeriu que a questão de quem limpa os banheiros era meramente uma questão “técnica”. Isso pode soar trivial, mas se considerarmos que definir quem limpa os banheiros (sejam os intocáveis na Índia, sejam mulheres de baixa renda em seus trabalhos e em suas casas, são quase sempre os oprimidos que limpam os banheiros) é uma questão de poder, e portanto política ao invés de técnica, então esse argumento deve ser visto como a articulação de uma visão que entende o “poder” como residindo só “lá fora”/”no topo”, mas não dentro do anarquismo, que tem ligações privilegiadas com uma essência humana naturalmente solidária.

 

2. Poder multi-localizado, e poder entre anarquistas

Essa linhagem “clássica”, entretanto está longe de ser o único anarquismo, ou o anarquismo verdadeiro. Antes, identifiquei uma questão crucial para os anarquistas: como responder à difusão dos centros de poder a que a crítica do marximo levou? Face a isso, só há uma única alternativa à resposta dada pelos anarquistas clássicos – a saber, desistir das ideias de unidade de lutas (contra a opressão) e da revolução como um evento único e cataclísmico. Essa, entretanto, foi uma conclusão que poucos – ninguém, até onde sei – se dispôs a chegar, e então uma segunda linhagem “aberta” se preocupou com introduzir “novos” (ou ainda: recentemente reconhecidos) centros de poder/opressão. Por exemplo, Emma Goldman trouxe a opressão das mulheres pelos homens/patriarcado (particularmente dentro da instituição da família burguesa) ao cânone anarquista (Marshall, 1992: 5); mais tarde, Murray Bookchin trouxe a consciência sobre as consequências ambientais do capitalismo industrial à visão de mundo anarquista (Bookchin, 1989).

O desfecho de toda essa atividade foi um desafio à visão clássica de um “acima” e um “abaixo” na sociedade, sugerindo um entendimento mais descentralizado do poder, que resultou em um quadro de “uma série de acimas e abaixos” (May, 1994: 49). Enquanto a visão clássica, mesmo quando sugeria uma diversidade de centros reais de poder, normalmente resultava em privilegiar um grupo social como o agente autêntico da mudança revolucionária – seja a classe trabalhadora, como sustentou Proudhon em algum ponto, seja a celebração da “grande ralé” dos centros urbanos feita por Bakunin (Gemie, 1994: 355; Newman, 2001: 30) – a imagem de uma multidão de sítios igualmente importantes (pelo menos potencialmente) de luta implica que nenhum grupo singular pode afirmar que a sua luta é necessariamente mais importante do que as outras (Laclau e Mouffe 2001)10. Essa linhagem aberta do anarquismo pode, portanto, ser resumida como opondo “o capitalismo, a desigualdade (incluindo a opressão das mulheres pelos homens), a repressão sexual, o militarismo, a guerra, a autirade, e o Estado” (Goodway, 1989: 2)11. Note que esse debate aparentemente abstrato têm implicações políticas cruciais: a questão de se uma contra-hegemonia libertária de Esquerda deve focar-se afinal na classe trabalhadora – uma visão expressada, por exemplo, no influente panfleto “Desista do ativismo” (Anônimo 2, 2000a, 2000b) – é politicamente relevante, já que irá determinar quais grupos tornar-se-ão o foco de uma mobilização política.

Como no caso da linhagem clássica, é fácil apontar exemplos desse entendimento do poder como algo multi-localizado nas afirmações dos anarquistas contemporâneos: em uma crítica das atividades dos grupos “socialistas autoritários” durante e após as mobilizações em Seattle, um ativista escreveu que os anarquistas “querem liberdade de todas as formas de opressão e domnicação, incluindo as organizações que querem pensar e representar e agir por nós” (Anônimo 6, 2000: 128). De maneira similar, a recentemente formada rede anarquista Peoples’ Global Action (PGA) – que emergiu primariamente como uma coordenadora das mobilizações globais contra cimeiras da elite, mas que agora está expandindo seu foco – afirma, em seus “marcos” que buscam expressar sua filosofia política, que, além de ser uma rede anti-capitalista, “nós rejeitamos todas as formas e sistemas de dominação e discriminção, incluindo, mas não se limitando a, patriarcado, racismo, e fundamentalismo religoso de todos os credos” (PGA, s/d). E finalmente, condizente com uma forte tradição do anarquismo, a crítica do poder é aqui extendida para abraçar não só as estruturas de poder que estão aparentemente “externas” à resistência, mas também ao poder que existe dentro das lutas anti-opressão. Para salientar isso, deixe-me retornar à discussão sobre quem deveria limpar os banheiros no acampamento de ativistas em Estrasburgo. O conceito de poder como multi-localizado e também existente dentro de espaços de resistência é expressado pela resposta ao primeiro interlocutor: “Não”, a próxima pessoa opinou, “é sim uma questão política” – ou seja, que envolve poder.

 

Até que ponto anarquismo?

Anarquistas opressores

Minha alegação é a seguinte: a visão do poder como externo / oposto a algum tipo da “natureza humana” tem efeitos diretamente opressivos, pois serve para obscurecer a dominação de um grupo de pessoas / ativistas em detrimento de outro. Em um comentário sobre as relações de gênero nos chamados “locais de protesto” (locais de floresta ocupados por ativistas a fim de evitar a derrubada de árvores para projetos de “desenvolvimento”), uma ativista começa sugerindo que o “conceito geral de um campo de [protestos] é aquele de uma sociedade livre” – de acordo com a vertente clássica do anarquismo. Na realidade, no entanto, ela aponta que tais acampamentos se tornam “um ambiente dominado pelo patriarcado”. Especificamente, isso ocorre no campo das relações sexuais, onde o discurso do amor livre (que é dito existir em uma sociedade livre) acabou colocando “uma certa pressão [sobre as mulheres] para se conformarem com o ideal do amor livre, e nem todo mundo quer tais relações” (Anônimo 6, 1998: 10, 12). O que fica claro aqui é que a ideia do poder como sendo externo à natureza humana, expressando-se na expectativa de que as mulheres pudessem, agora liberadas no espaço livre do acampamento, finalmente se conformar ao ideal de amor livre, tornou-se opressiva em si mesmo: pressionou as mulheres conformarem-se com o ideal do que seria a “essência humana”, para viver de acordo com um ideal elas nunca construíram.

 

Anarquismo aberto – Aberto, sim, mas indo para onde?

Assim, a prática anarquista pode em si mesma ser opressiva, ou pelo menos implicar relações de poder, especialmente se esse poder estiver mascarado por trás da idéia de uma possível prática livre de poder. Mas, pode-se perguntar, qual é a diferença entre as duas “vertentes” nisso? Afinal, mesmo que a vertente aberta tenha uma visão mais sutil de uma multiplicidade de centros de poder, ainda se opõe a esses centros de poder algum agrupamento de forças sociais, organizado no que Gemie chama de “contra-comunidade”, aliados contra o Estado (Gemie, 1994: 353) – e, nesta comunidade, uma prática livre de poder poderia, presumivelmente, se desenvolver. Parece que não há diferença real: ambos os lados afirmam ser capazes de “realmente” se livrar do poder.

Há, no entanto, uma diferença importante, uma diferença que irá provar-se crucial para determinar o maior desenvolvimento político de cada uma dessas linhagens e, acredito, do próprio anarquismo. Como mostrado acima, a visão de anarquismo como prática livre de poder, ou pelo menos como contendo tal possibilidade, é um componente inerente e necessário da vertente clássica; a vertente aberta, no entanto, levada a cabo até à sua conclusão lógica, impossibilita a crença em uma prática sem poder. O argumento começa novamente com e contra o marxismo: o último postula a “unidade nas relações de poder” como seu critério de definição (Holloway, 2002: 40).
Pode haver duas forças lutando, mas existe apenas um centro de poder real que precisa ser conquistado. Como mostrado, o anarquismo originalmente abriu esse monismo para sugerir a existência de dois ou três centros de poder. Enquanto a vertente clássica então reduziu esses centros de volta a um (a “lógica” de poder ou opressão), a segunda linha manteve essa abertura, levando à proliferação dos centros de poder descritos acima: de dois, para três, para cinco para… uma multidão.
Tudo está bem até agora. Mas o que acontece agora? Aparentemente, a difusão de centros de poder que resultam do rompimento original com o monismo não tem um objetivo lógico, e nem sequer se detém na integridade do indivíduo que alguns anarquistas valorizam tanto: mesmo uma pessoa que é oprimida em vários aspectos (homossexualidade , feminilidade) será um opressor sobre os outros (classe alta, branco). Portanto, fluindo logicamente das premissas da segunda vertente e da lógica política assim implícita (nenhuma luta vale necessariamente mais do que outra), obtemos uma imagem das relações de poder que atravessam toda a sociedade, penetrando até nós mesmos como sujeitos. Dada essa difusão de poder em nosso próprio ser, as conclusões devem ser: (1) não se pode continuar a pensar a revolução como um evento isolado, pois isso implica a existência de um ou apenas um pequeno número de centros de poder. Se o poder também está embutido nas estruturas de valores, como demonstra o exemplo do patriarcado, então a “revolução” deve ser vista como um processo, já que é claramente impossível “revolucionar” valores e atitudes de um dia para o outro12; e (2) não podemos escapar do poder, porque toda relação humana envolve (mas não é exclusivamente constituída por) relações de poder e, portanto, poder “sobre” alguém. Portanto, o poder está em todo lugar.

 

Do anarquismo aberto ao anarquismo pós-estruturalista

Tendo assim mostrado o poder como inescapável, somos confrontados com outro ponto em que o anarquismo poderia simplesmente se autodestruir, já que seu projeto original – a emancipação de todas as formas de hierarquia e poder – parece ter se tornado uma impossibilidade teórica e prática. No entanto, é aqui que a análise pós-estruturalista pode ser útil, por assim dizer, para pensar o anarquismo aberto em suas conclusões lógica e politicamente necessárias. Eu não procuro tanto provar que o anarquismo e o pós-estruturalismo são compatíveis e mesmo prováveis aliados teóricos – isso foi feito13 -, mas sim entender como o pós-estruturalismo e o anarquismo podem ser aliados práticos, como a análise pós-estruturalista pode ser usada para avançar a prática anarquista, e vice-versa.

O pós-estruturalismo desenvolveu-se numa conjuntura histórica em alguns aspectos não muito diferente daquele em que o anarquismo emergiu como um movimento político distinto. Enquanto o segundo emergiu em resposta à sua crítica do marxismo como uma prática potencialmente opressiva (Miller, 1984: 79-93; Joll, 1969), que levou à divisão na Primeira Internacional, o período durante o qual o pós-estruturalismo desenvolvido também viu o surgimento do movimento estudantil de inspiração anarquista de 1968 na França (Bookchin, 1989; Marshall, 1992: 539-57), e tanto os professores quanto os estudantes lutaram contra um Partido Comunista Francês (PCF) ossificado e opressivo, na prática e em teoria: uma das principais preocupações de Foucault era desafiar o bloqueio intelectual ao pensamento progressista que o PCF havia estabelecido com base em sua alegação de que ele sozinho detinha a chave para uma verdadeira compreensão do funcionamento do capitalismo e, portanto, também para seu entendimento. Em particular, foi a questão da internação nos Gulags soviéticos que não pôde ser discutida abertamente, sugerindo que o marxismo, como prática, envolvia uma série de formas de opressão não analisadas (e não-analisáveis) (Foucault, 1980: 109-10) – uma crítica que espelha de perto as críticas anarquistas do marxismo, em particular a condenação contundente de Bakunin ao inerente elitismo cientificista do marxismo: “Assim que uma verdade oficial é pronunciada, […] uma verdade proclamada e imposta a todo o mundo a partir do topo do Sinai marxista, por que discutir alguma coisa?” (Em Miller, 1984: 80).

A crítica chave de Foucault ao marxismo está relacionada à forma como as afirmações de conhecimento inerentes ao marxismo estão estruturadas: que existe uma realidade lá fora, que está escondida sob aparências (por exemplo, a opressão do trabalhador como realidade está escondida sob o aspecto da alienação e do fetichismo da mercadoria) ). Dado que existe então uma realidade “verdadeira”, deve ser possível obter conhecimento dessa realidade, é claro, somente depois de ter absorvido a doutrina “própria” do marxismo-leninismo. Foucault chegou a ver as “afirmações da verdade” feitas a partir dessa posição, ou seja: o PCF conhece a natureza “verdadeira” da situação, enquanto aqueles que não estão suficientemente mergulhados na teoria não podem conhecer a verdade – de fato, todas as afirmações eternas de verdade – como fundamentalmente opressivas, porque elas imediatamente introduzem hierarquias: eu sei, e você não. Portanto, sou mais poderoso que você. O “conhecimento”, que é a reivindicação de saber o que “realmente” é, é então uma forma de poder (Foucault, 1980: 132-3). Mas, como sugerido acima, isso não é nada de novo, dado que Bakunin já havia feito afirmações semelhantes. O insight fundamental de Foucault era que o conhecimento do mundo exterior (por exemplo, do fato de que “existe” uma luta política lá fora, que o patriarcado é uma “realidade”) é também o que nos permite agir politicamente, e na realidade agir em qualquer sentido. Portanto, ele passou a ver o poder não apenas como repressivo, mas também produtivo, e começou a olhar não apenas para os efeitos restritivos do poder, mas também para sua “eficácia produtiva, sua utilidade estratégica, sua positividade” (Foucault, 1990: 86). O foco de análise de Foucault não era, portanto, um conjunto de relações de poder estruturadas no modo cima-baixo familiar (seja com um topo ou com muitos, embora ele não negasse que as relações de poder eram sempre estruturadas de forma desigual), mas o poder como teia, “multiplicidade de relações de força” sem cimas ou baixos, e como “o processo que, através de incessantes lutas e confrontos, os transforma, fortalece ou inverte” (Foucault, 1990: 92-4).

Então, como isso se relaciona com o anarquismo? Permite-nos, por exemplo, compreender a situação no campo de protesto acima mencionado: Foucault sugere que a visão de poder como fundamentalmente repressivo e, portanto, oposto a algo que pode ser chamado de “verdade” (ou “anarquismo” ou “soeicdade livre”) é, na verdade, um dos principais métodos para manter certas relações de poder, pois permite que elas se escondam por trás da máscara de serem o “oposto” do poder (Foucault, 1990: 86). Em nosso exemplo, a anarquia como “não-poder” é apenas uma fachada por trás da qual certos grupos de ativistas (os mais experientes, os que têm mais conhecimento, os homens) escondem seu poder. Por sua vez, uma análise foucaultiana compreenderia a capacidade da crítica anônima do local do protesto de empregar seu argumento como possibilitado por ela ter acesso ao conhecimento necessário para escrever e divulgar seu texto: se todas as reivindicações da verdade são produtos de poder, então a reivindicação de verdade feita pela análise feminista deve ser também. “Patriarcado” não é, então, algo que exista como uma categoria antes de as feministas a construírem, mas uma categoria que foi criada para ser usada para alterar as relações de poder entre os gêneros, criando a “ausência de liberdade para as mulheres” como uma falta sentida pelas mulheres (“liberdade” novamente sendo uma categoria que não pré-existe sua construção social), que pode então se tornar a fonte da atividade emancipatória16. O resultado: uma análise pós-estruturalista radicaliza o anarquismo como uma crítica às relações de poder, estendendo-o ao próprio campo da resistência. Considerando que o anarquismo já havia visto a existência de relações de poder dentro de espaços de resistência como simplesmente uma aberração (por exemplo, Anônimo 5, 2000; Levine, 1984), mantendo assim aberta a possibilidade de um lugar privilegiado de liberdade que a prática anarquista poderia alcançar, chegamos agora a um quadro em que uma prática de resistência deve ser vista como estabelecendo uma relação de poder (ou alterando uma existente) – do poder estar em toda parte, por padrão, ao poder estar em toda parte por necessidade.

 

Anarquismo pós-estruturalista, poder, e identidade

Tendo entendido agora qualquer forma de resistência como uma forma de poder, onde isso nos deixa? Temos que desistir de resistir, simplesmente porque qualquer declaração de que as pessoas são oprimidas pressupõe uma relação de poder? Esta parece ser uma conclusão válida: mesmo se entendermos o poder como produtor de todas as nossas ações e, portanto, inevitável, poderemos ainda argumentar que é necessário minimizar o poder que exercemos sobre os outros. Uma maneira de fazer isso seria evitando a construção de identidades comuns entre pessoas que se engajariam na luta social como uma força coletiva.

Mas deixe-me recuar por um momento: de onde surgiu essa questão de “identidade”? Como sugeri acima, as alegações das feministas de que todas as mulheres no mundo são oprimidas por uma estrutura de poder do patriarcado envolviam uma tentativa de reestruturar as relações de poder entre os gêneros: a tentativa de construir uma identidade comum a todas as mulheres dizendo às mulheres que elas deveriam sentir-se oprimidos (porque, claro, na “realidade” elas são), e que, portanto, devem lutar contra essa opressão, e a tentativa de criar uma identidade política sob a liderança daquelas que a constroem. Como Laclau e Mouffe colocaram: “articulações hegemônicas criam retroativamente os interesses que elas reivindicam representar” (2001: xi). Isso não é minimizar ou ridicularizar a opressão das mulheres – apenas sugerir que as estratégias políticas que visam mobilizar as pessoas para uma luta contra essa opressão envolvem tentativas de construir identidades coletivas e, portanto, o estabelecimento de relações de poder. E, por sua vez, as estratégias perguntam àqueles que terão sido mobilizados com sucesso para essa nova identidade coletiva, seja ela chamada “sororidade global”, “o povo”, ou “a classe trabalhadora”, que tentem alterar suas relações de poder com aqueles que são vistos como opressores. Em suma: a política é uma construção de identidades coletivas como base para a ação e, portanto, refere-se ao poder. A questão agora é bem simples: achamos que engajar-se em política ainda é uma boa ideia ou não?

 

Anarquismo pós-estruturalista como não-política a-política?

Vou me concentrar no trabalho do filósofo alemão Peter Sloterdijk, cujo trabalho – influente e controverso na Alemanha, exemplificado por seus conflitos públicos com Jürgen Habermas – tem recebido cada vez mais atenção fora de seu país de origem17. Sloterdijk, em uma jogada tipicamente pós-estruturalista, primeiro elabora uma crítica muito vigorosa das relações de poder inerentes às tentativas de construir identidades políticas, e então toma precisamente o passo que eu espero evitar: de uma crítica à política à abdicação de política. Começando com a afirmação de que o conhecimento foi demonstrado como sendo (uma reivindicação a) poder, e a “verdade” como mera estratégia, ele define seu projeto como levando a termo a tarefa do Iluminismo, isto é, a exposição do poder pelo desmantelamento das fachadas atrás das quais se esconde (Sloterdijk, 1983: 12, 18). Em termos de colocar o pós-estruturalismo em geral e Sloterdijk em particular em relação ao anarquismo, isso é bastante significativo: o anarquismo pode ser similarmente considerado uma tentativa de conclusão do projeto iluminista (tomando sua definição), pois radicalizou a crítica do poder apresentada primeiro pelo liberalismo iluminista, e depois pelo marxismo, para a estender a todos os reinos da vida18.

A batalha final que o Iluminismo ainda precisa vencer, Sloterdijk sugere, é expor o poder que se esconde por trás da noção de identidade, expor o ego, ou sujeito, como construído (Sloterdijk, 1983: 131-2). Traçando a construção de uma identidade de classe burguesa (e a tentativa um pouco menos bem-sucedida de construir uma identidade positiva da classe trabalhadora), Sloterdijk revela que esses foram projetos políticos, alterando e estabelecendo relações de poder criando a própria força política que os líderes alegavam. representar (ibid .: 133-54).
A política, portanto, torna-se uma luta entre identidades e saberes de poder: qualquer mobilização em torno de qualquer tema político, anarquista ou progressista, necessariamente envolve não “essências” (como em: somos essencialmente operários oprimidos), mas a construção de “um novo conhecimento-poder e a criação de um novo assunto de poder-conhecimento”19. É neste contexto que o Iluminismo de Sloterdijk luta para abrir “as identidades congeladas”, celebrando contra este produto necessário da política uma “antipolítica existencial” que procuraria rejeitar todas as tentativas de nos identificar, romper os mecanismos disciplinares. que nos fazem obedecer a uma visão particular do que devemos fazer e de como devemos ser. Porque “política é [o que acontece] quando as pessoas tentam esmagar as cabeças umas das outras” (ibid .: 250; 315-19). Sloterdijk identifica sua (não) estratégia para conseguir isso como “kinismo”: uma tentativa de romper os condicionamentos sociais / mecanismos disciplinares afirmando fisicamente nossa capacidade de desfrutar a vida apesar desses condicionamentos – por exemplo, ele cita com grande alegria o exemplo de Diógenes, que rebateu as lições eruditas de Platão sobre o “Eros” ao se masturbar publicamente na praça do mercado de Atenas. O cinismo nunca envolveria a construção de novas identidades, porque todas as identidades são disciplinadoras, normalizantes, envergonhantes: prefeririam estar buscando uma experiência de vida “real” (eigentlich – em oposição a construída, não autêntica), que podemos alcançar não através da política – Sloterdijk afirma claramente que sua luta é “sobre a vida, não sobre a mudança da história” (ibid .: 242) -, mas sim “no amor e arrebatamento sexual, na ironia e no riso, criatividade e responsabilidade, meditação e êxtase” (ibid.: 390).

Então, onde é que a (não)política de Sloterdijk, que tratarei como representativa de qualquer tendência do anarquismo e do pós-estruturalismo que se move da crítica à política para o abandono da política, nos deixa? Com, eu sugeriria, várias inconsistências gritantes. A primeira e provavelmente a mais prejudicial para a posição de Sloterdijk é o fato de que mesmo sua não-política está necessariamente embutida nas relações de poder e, portanto, é política. A fim de retirar-se da “sociedade estabelecida” ou de desafiar fisicamente os mecanismos disciplinares sociais, é preciso ter um bom número de privilégios: muitos anarco-ativistas que hoje estão no desemprego tendem a esquecer que essa falta resulta do Estado transferir parte da mais-valia produzida pelos trabalhadores, seja em seus próprios países ou em outro; estabelecer uma comuna exige, pelo menos, recursos intelectuais e financeiros (habilidades e dinheiro), que são produtos do poder; e finalmente, enquanto o Diógenes de Sloterdijk pode muito bem ter se masturbado e cagado no mercado ateniense com uma boa dose de sucesso público, podemos supor que uma pessoa que tenha sido definida pelas autoridades como “louca”, ou “sem-teto”, não produziria qualquer efeito com tal ação, além de ser preso, ou pior, ignorado. É verdade que a masturbação pública do Prof. Sloterdijk certamente teria um interessante efeito “kínico”, mas isso pressupõe a própria posição que ele alcançou (chefe de departamento em uma universidade alemã) como resultado do poder. O kinismo, ou qualquer “não-prática” aparentemente não-política (ibid.: 939-53) que vise evitar a política para evitar o poder, comete o velho erro de ignorar as relações de poder nas quais ele mesmo se baseia e que ajudam a produzi-lo como uma prática. Em outras palavras: tentar contornar as relações de poder é reafirmá-las e negar-se a capacidade de fazer algo a respeito delas.

A segunda crítica está ligada à primeira, mas não é idêntica a ela: tendo afirmado que o poder é inevitável, argumentarei agora que a “identidade” – isto é, uma distinção interior / exterior mais ou menos consciente – é simplesmente uma condição geral de comunicação e existência social, e não é apenas inevitável (por padrão), mas capacitadora e necessária. Sloterdijk, entretanto, já antecipou este movimento: ele afirma que o desejo de mergulhar constantemente em novas identificações, uma vez que uma identidade anterior é quebrada, faz parte de uma “programação” mais fundamental de nós mesmos, onde passamos a pensar em nossa subjetividade como algo necessariamente ligado a uma identidade. Além disso, Sloterdijkk identifica a afirmação de que tal tendência existe como um exercício de “conhecimento magistral”, que sugere que a maioria das pessoas preferiria mais ter segurança do que liberdade, uma posição que, por sua vez, leva a reivindicações de representar essas “pobres pessoas”, de exercer poder sobre elas, de dominá-las (ibid .: 155-6, 348). Novamente, nessas questões aparentemente esotéricas não estamos tão distantes da prática anarquista real quanto possa parecer: o panfleto “Desista do ativismo” recentemente exigiu dos libertários de esquerda que sua política envolvesse não a construção de novas identidades, mas a abertura das identidades antigas (especialmente a de “ativista”) e a criação de uma situação de abertura fundamental para a expressão do que poderia ser chamado de “identidade não identitária” (Anônimo 2, 2000a).

Três argumentos podem ser feitos contra essa visão. Primeiro, ao argumentar que qualquer reivindicação de identidade é opressiva e, portanto, concluir que a “essência” da liberdade humana é não estar ligada a nenhuma identidade, Sloterdijk superou seu alvo. Ele construiu uma nova “identidade” ou essência humana, a da pessoa que procura constantemente escapar de ser forçada a uma identidade. A implicação necessária disso é que qualquer busca por “igualdade”, comunidade, por identidade coletiva, é a expressão da “programação profunda” identificada acima e, portanto, não “essencialmente” livre e humana. A partir disso, segue-se diretamente que qualquer um que não busque constantemente romper identidades, constantemente redefinir-se, deve mudar seu comportamento, e estar em conformidade com os padrões estabelecidos por Sloterdijk – ou o autor de “Give up Activism”. Claramente, essa afirmação de conhecimento de uma “essência” humana torna-se mais uma forma de construção de hierarquia, com aqueles que constantemente escapam da identidade em cima, e aqueles que não estão embaixo. Tendo desconstruído todas as essências, estamos de volta com uma nova essência, desta vez hipermóvel. Por outro lado, parece que a prática da “hipermobilidade social” é, um pouco como o cinismo de Sloterdijk, baseada em uma série de recursos para manter tal vida: em outras palavras, é uma estratégia dos privilegiados.

O segundo argumento contra a hipermobilidade é, claro, precisamente o que Sloterdijk antecipou: que os humanos precisam de identidade. Deixe-me começar com o exemplo da linguagem. Parece claro que nos entendemos até certo ponto em e através do uso da linguagem – os argumentos de Sloterdijk foram, afinal, expressos em alemão. Sendo a linguagem um elemento poderoso na construção de identidades coletivas, Sloterdijk evidentemente também está preso em uma identidade: não aquela de “um alemão”, mas de um falante de língua alemã. Como isso é uma identidade? Muito simplesmente, na medida em que define um grupo de “os de dentro” ou “nós” (aqueles que falam uma língua) e de “os de fora” ou “eles / os outros” (aqueles que não falam). Em outras palavras: a escrita é baseada na linguagem, a linguagem é baseada na identidade, a identidade é baseada no poder, sugerindo que, se tentamos nos comunicar, já estamos envolvidos na construção de identidades coletivas (Lyotard, 1984: 15) e, portanto, Sloterdijk não pode consistentemente afirmar ter escapado do poder e da identidade em sua não-prática não-política.

Mas, pode-se afirmar aqui, talvez seja possível construir identidades que, pelo menos, não envolvem a disciplinação / normalização que (geralmente?) acompanha as identidades. Isso leva à terceira e última crítica da não-prática não-política: não apenas a identidade é necessariamente exclusiva, como mostrado acima, como também é indesejável não ter qualquer forma de mecanismo disciplinador em uma sociedade: do ponto de vista anarquista, por exemplo, o comportamento sexista não é uma questão de legitimamente afirmar a diferença de alguém, mas é simplesmente inaceitável e opressivo. Portanto, seria preciso criar estruturas sociais, ou mecanismos disciplinadores, que impedissem o desenvolvimento do comportamento sexista e, se ele se desenvolvesse, teria que haver mecanismos para lidar com isso. Em outras palavras: mesmo a comunidade anarquista mais perfeita precisa ser disciplinada – qualquer outra coisa implicaria liberdade de todos para fazer qualquer coisa, não importando que tais ações pudessem ser opressivas para os outros. Portanto, uma coisa é fazer uma reivindicação teórica do radicalismo “verdadeiro”, proclamando a conveniência da não-identidade baseada no argumento de que as identidades são opressivas e disciplinadoras (um ponto que não é nem teoricamente coerente, como mostrado acima), e outra construir espaços políticos radicais que buscam colocar em prática o que são o anarquismo e o pós-estruturalismo: críticas contínuas ao poder e à opressão.

 

De volta ao mundo real: Práticas anarquistas, heterotopia, e contra-hegemonia

Agora é importante voltar à discussão de práticas anarquistas concretas para demonstrar que as conclusões aqui elaboradas já foram, até certo ponto, elaboradas por ativistas, tanto conceitualmente quanto na prática. Isso quer dizer que tanto a compreensão de suas próprias práticas como poder e modéstia concomitante, quanto tentativas autoconscientemente “poderosas” de estabelecer estruturas contra-hegemônicas, são atualmente visíveis nos círculos anarquistas.

Deixe-me começar com os exemplos “conceituais”, isto é, onde as idéias expressas por escrito pelos ativistas anarquistas se assemelham àquelas desenvolvidas aqui e, portanto, implicam estratégias similares. Em primeiro lugar, em um ensaio que discute o uso da ação direta, um ativista aponta que a ação direta e a comunidade prefigurativa na qual ela se baseia e busca criar não são necessariamente boas, porque podem envolver a exclusão de pessoas de fora. Afinal de contas, “que tal uma [comunidade] que envolve sexismo não reconhecido, racismo, ser da classe certa?” (Anônimo 11, 2001: 137). O escritor nunca pode estar totalmente certo de que sua ação é “boa” (um reconhecimento de uma perda de certezas finais), porque pode envolver um exercício indevido de poder sobre os outros. No entanto, ela não pode permanecer congelada; mesmo em meio a essa incerteza, tenho que agir e aceitar sua falibilidade em um exercício de poder que é guiado pela crença de que algo é importante (Anônimo 11, 2001: 138). Seu direito de agir, em outras palavras, deriva de sua ética, e seu ativismo, portanto, torna-se uma relação consciente de poder guiada por uma ética modesta.

No segundo exemplo, o autor define o projeto anarquista como um que visa construir “espaços não hierárquicos e relações sociais livres e iguais”, mas continua a criticar as tendências excludentes e homogeneizadoras da contracultura anarquista (Anônimo 1, 2001: 551-2). Argumenta-se que os anarquistas devem abandonar a segurança que vem com “identidades coletivas relativamente fechadas e homogêneas”, que “solapam a liberdade e a autonomia dos membros do coletivo, parcialmente negam as identidades particulares das pessoasm e introduzem dinâmicas arriscadas de poder e liderança”. Antes, eles deveriam abraçar a “diversidade e o respeito pela diferença” como uma condição necessária para a autonomia (ibid.: 554-5). Tendo perseguido esse argumento até agora, o autor pergunta: o que dizer sobre “comportamentos, valores e idéias que não podem ser aceitos”, especialmente aqueles cuja aceitabilidade é contestada? Enquanto alguns valores coletivos são claramente necessários, o desafio é dar mais espaço ao desacordo, que é realizado para trazer criatividade e mudança. Finalmente, o autor pede aos anarquistas que “experimentem e melhorem as formas de eliminar todas as formas e sistemas de opressão, dominação e discriminação dentro de nossos próprios círculos (mantendo o direito à diferença e tomando precauções contra a formação de identidades coletivas dominantes)” ( ibid .: 562). Embora este texto espelhe muitos dos argumentos desenvolvidos acima, ele claramente não rejeita a noção de uma prática potencialmente livre de poder. No entanto, visto que esse potencial é visto como contido principalmente no esforço, o autor é capaz de criticar as relações de poder externas e internas, e trabalhar para uma estrutura contra-hegemônica baseada em alguns valores coletivos, mas visando a maior diferença possível, em outras palavras, em valores modestos.

E finalmente, há também exemplos práticos de anarquistas que buscam uma estratégia que pode ser chamada de “contra-hegemônica” no sentido discutido aqui. Três projetos vêm à mente: a PGA [People’s Global Action, Ação Global dos Povos]; o chamado “processo de consulta”; e os acampamentos “No Borders” (este último já mencionei no contexto do debate sobre sanitários e poder). O tratamento desses exemplos terá que permanecer breve, até mesmo esquelético, já que eles não pretendem capturar totalmente o significado dessas práticas, mas sim entender sua relação com as posições teóricas que estabeleci acima.

A PGA, formado em 1998, é uma rede global de grupos de base que agem de maneira consistente com as regras básicas estabelecidas nas “marcas” da rede: grupos que constroem alternativas locais à globalização; rejeitar “todas as formas e sistemas de dominação e discriminação”; ter uma atitude de confronto com as estruturas de poder dominantes (governamentais e econômicas); organizar com base em princípios de descentralização e autonomia; e empregar métodos de ação direta e desobediência civil (PGA, s.d.). Com base nessas características, a rede pode claramente ser considerada anarquista. Apoiando essa hipótese é sua forma “essencialmente” anarquista de evitar reivindicações à representação: a PGA não pode ser representada por alguém, nem pode representar quaisquer pessoas ou grupos. Quanto às estruturas formais e informais da PGA, elas são limitadas a um comitê rotativo de convocadores que organizam as conferências da rede e um “grupo de apoio” informal de ativistas auto-selecionados que apóiam os convocadores em seu trabalho. Essa rede pode ser vista como um passo significativo na possível construção de uma contra-hegemonia anarquista, na medida em que tenta aprofundar as ligações políticas entre vários grupos radicais para fortalecer tanto os sentimentos de solidariedade coletiva quanto a capacidade dos anarquistas de resistir à repressão agindo como ferramenta de comunicação e coordenação de atividades e grupos radicais. É então um exemplo de construção de movimento “intensivo” / interno, baseado em um conjunto de princípios definidos que visam a maior diversidade possível de práticas e estruturas, ao mesmo tempo em que criam alguns limites em termos do que é aceitável.

Em segundo lugar, a “consulta social” é algo ainda mais em fluxo, de modo que há muito pouco a dizer concretamente sobre aquilo que é, na melhor das hipóteses, um “processo” e, na pior, até agora apenas uma ideia, visando a disseminação de práticas de democracia radical da subcultura anarquista para outros grupos sociais20. Como os grupos locais, nesse estágio inicial do desenvolvimento da idéia, têm sido quase totalmente “livres” para decidir o que querem que a consulta seja, é provável que a discordância continue. No entanto, alguns princípios podem ser extraídos de um dos principais documentos do debate sobre a forma que o processo pode tomar, o “Guia de Consulta Interna” (GCI). Esse começa apontando que, em face do aumento da repressão, a esquerda libertária precisa primeiro fortalecer suas redes e, em segundo lugar, “conectar-se ao resto da sociedade”. O elemento básico do processo de consulta deve, portanto, ser assembleias “populares” locais, baseadas, como a PGA, num conjunto de “marcos”, a fim de assegurar que a consulta permaneça “tão aberta, democrática e horizontal quanto possível”. Pode-se então dizer que a consulta é um exemplo de construção extensa / externa de movimento, uma vez que tenta ampliar o alcance da mensagem e capacidade de mobilização dos anarquistas, ao mesmo tempo em que aumenta sua legitimidade pública. E quanto à questão do poder, seguindo o CGI, este aspecto do projeto anarquista contra-hegemônico contém até mesmo um reconhecimento de um ato de poder no estabelecimento de marcas para assegurar diferença e diversidade.

O projeto final que vou mencionar aqui é o dos acampamentos “No Border”. Estes foram organizados (principalmente na Europa) por uma rede frouxa de grupos em campanha em torno de questões de liberdade de movimento e direitos dos imigrantes. Para os propósitos de minha discussão, entretanto, o que é relevante sobre esses campos não é tanto a questão da imigração, mas a tentativa “de implementar uma visão completa do(s) mundo(s) pelo(s) qual(is) estamos lutando aqui e agora, até os menores detalhes da vida cotidiana”, como diz o “manual” do acampamento de Estrasburgo (No Border Camp, 2002: 2). Deixe-me começar com este manual então. Seu legendário subtítulo designa-o como um “manual de geopolítica intra-campal”, um bom sinal do reconhecimento da organização do acampamento que se trata de uma questão de lutas de poder. Além disso, os organizadores pedem que, enquanto as discussões sobre a organização do acampamento ocorram, “o funcionamento geral do campo não deve ser questionado”, mesmo que as regras que isso implica “nem sempre convencerão todos, nem evitarão conflitos”. Claramente, os organizadores reconhecem as decisões que tomaram como imperfeitas, mas sugerem que sua aceitação é necessária para permitir que o acampamento (uma forma embrionária de uma comunidade sustentável de resistência anarquista) desempenhe suas funções básicas. O seu apelo é para que todos “desafiem o comportamento racista, sexista, anti-semita, e homofóbico, e portanto [os organizadores] esperam que todos tenham certeza de que tais atitudes não encontrem espaço” no acampamento (ibid.). O fato de que é tão abertamente reconhecido que as regras aqui estabelecidas são um exercício de poder em última instância arbitrário (mas eticamente motivado), tomado em conjunto com o ensaio sobre ação direta discutido acima, sugere que é a implementação prática de um projeto anarquista em comunidade com outros que é mais provável que produza essa consciência “pós-ou”, simplesmente estruturalista “modesta”, do que outras formas de prática (escrita, organização, etc.). A razão para isso parece ser que, embora seja possível argumentar em teoria por uma prática livre de poder, qualquer prática anarquista autoconsciente será na realidade sobre relações de poder – uma conclusão que é forçada a ativistas pela forte e salutar tendência dos anarquistas em ver opressão e dominação em toda parte, e atacá-la vigorosamente. É preciso apenas uma reunião de uma hora durante a qual a proposta supostamente isenta de poder é rasgada em pedaços por pessoas que argumentam que oprime mulheres, recém-chegados, pessoas idosas, pessoas com deficiência física, imigrantes, ou quem quer que seja, para que se perceba que nada que alguém poderia dizer jamais seria desprovido de poder.

 

Epílogo: Anarquistas, modestos e incertos – mas ainda contra-hegemônicos?

O acampamento de Estrasburgo acomodou entre 2.000 e 3.000 ativistas durante um período de mais de uma semana. Apesar de divergências maciças, representou um exemplo muito bem sucedido de vida anarquista envolvendo um grande número de pessoas, que desenvolveram laços de solidariedade baseados em princípios comuns que lhes permitiram organizar anarquicamente os próprios detalhes da vida cotidiana – até mesmo quem limpa os banheiros: No final, um grupo funcional de voluntários foi formado para fazer isso. O acampamento operava sob a constante ameaça (e fato) de repressão policial e, mesmo assim, conseguiu fazer algum contato (ainda que limitado) com grupos de imigrantes ilegais – embora a construção dos contatos com os habitantes de Estrasburgo parecesse, pelo menos do meu ponto de vista, lamentavelmente limitado. O acampamento certamente não era perfeito – mas o anarquismo de hoje não pode mais afirmar ser perfeito. Tudo o que podemos fazer é tentar criar espaços e relações onde a dominação e a opressão sejam mínimas.

Como sugeri acima, esse tipo de modéstia política deve, em última instância, fluir de uma aceitação da inevitabilidade do poder. A incerteza fundamental que isso introduz nas ações políticas dos anarquistas pode ser desconcertante a princípio, mas pode ser usada produtivamente para reconhecer que todas as nossas políticas são guiadas por nossa ética e que a ética, não a verdade histórica ou o destino, se torna a essência do trabalho político. Embora possa haver muitos que consolam a crença de que – como diz um grafite anarquista – “no final, venceremos”, e o senso de missão histórica, verdade e inevitabilidade que isso implica, certamente todos nós percebemos em nosso trabalho político cotidiano que não há inevitabilidade histórica em nada político: mobilizar significa apelar para, e mudar, a percepção das pessoas sobre o que é bom e ruim. Sua ética, em suma.

A partir daí, argumentei que é apenas um pequeno passo no sentido de aceitar a necessidade e a aceitabilidade ética de uma estratégia de contra-hegemonia anarquista, ou a criação de comunidades sustentáveis ​​de resistência. Projetos como a PGA, a consulta, ou os acampamentos No Border sugerem que há pessoas ativamente tentando construir essas comunidades. Ao fazer isso, eles sempre terão que retornar à incerteza fundamental da organização política hoje, para encontrar uma rota que negocie entre dois tipos de opressão: a de poucas regras / identidades e a de muitas regras. Isso não parece muito com um projeto político; tais projetos parecem sempre precisar de certeza. Mas numa época em que o projeto do neoliberalismo está tendo conseqüências obviamente desastrosas; quando a social-democracia está em coma, se ainda não foi pro saco; quando fascistas e proto-fascistas estão em ascensão; e quando a esquerda autoritária não consegue mobilizar resistência suficiente; este anarquismo pós-estruturalista incerto e modesto parece ser a nossa melhor chance de um novo projeto emancipatório21. Nele, um movimento (o anarquismo) encontrou uma análise (o pós-estruturalismo) que encontrou uma estratégia (a contra-hegemonia), encontrou um movimento, etc. Uma síntese incerta, eu admito. Mas a incerteza, talvez até mais do que a variedade, é o verdadeiro tempero da vida

 

Referências

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Notas

1. Compare a condenação de Gemie à “aproximação, agora padrão, de Godwin–Stirner–Proudhon–Bakunin–Kropotkin” (Gemie 1994: 350)

 

2. Veja também Cross (2002)

 

3. Estou empregando aqui uma distinção entre conhecimento “escritural” e “incorporado” (i.e., praticado), sugerida por Jon Mitchell em uma apresentação sobre a antropologia da religião durante um seminário na Universitade de Sussex, Brighton, em 24 de Maio de 2002.

 

4. Para o que pode ser chamado de uma leitura “escritural” do anarquismo, veja, p. ex., Miller (1984) e Joll (1969).

 

5. Compare com Holloway (2002: 1-10).

 

6. Graeber relaciona essa noção de pré-figuração diretamente à ala anarquista do movimento anti-globalização (Graeber, 2002: 62). Esta refere-se a uma política que, em sua prática atual, busca “pré-figurar” a sociedade futura pela qual luta – uma noção de política justaposta a uma aproximação mais “sistêmica”, que negaria a possibilidade ou eficácia de tais comunidades “utópicas”.

 

7. Trata-se, na nossa opinião, de um exagero. As análises são pertinentes, ao menos em um sentido limitado, também para o contexto brasileiro.

 

8. Veja, p. ex., Gill (2000)

 

9. Gramsci estabeleceu que as alianças entre diferentes grupos sociais (classes/frações de classes) sob a liderança de um deles seria uma condição essencial da hegemonia (Gramsci, 1971: 53)

 

10. A questão de se qualquer luta é concretamente mais importante do que as outras é uma questão que deve ser respondida após uma análise concreta, e não postulada a priori.

 

11. Análises relacionadas do anarquismo como constituído fundamentalmente de duas linhagens, uma mais monística e uma mais pluralística, podem ser encontradas em Gemie (1994) e May (1994).

 

12. E existem ainda discordâncias sobre se o termo “revolução” ainda deveria ser utilizado pelos anarquistas: compare Anônimo 1 (2001: 546).

 

13. Ver Newman (2001), May (1994), Koch (1993), Schürmann (1986), Easterbrook (1997), e Mümken (1998). Habermas também reconheceu o potencial anarquista da análise pós-estruturalista (Habermas 1987: 4–5).

 

14. Muitos outros pensadores pós-estruturalistas poderiam ser citados (e o foram) para sustentar teses similares, incluindo por exemplo Lyotard, Deleuze e Guattari, ou Derrida (ver, em especial, May, 1994, e Newman, 2001).

 

15. Para além de minha experiência pessoal, tais exemplos podem ser encontrados especialmente em Habermas (1987); para uma visão geral das críticas de Habermas e seus associados ao pensamento pós-estruturalista, ver Best e Kellner (1991: 240-255) e, de um ponto de vista anarquista, Zerzan (s.d.).

 

16. Foucault argumentava que a existência do desejo, no caso da liberação feminina, já pressupõe uma relação de poder, dado que essa produz “tanto o desejo quanto a falta na qual este se baseia” (Foucault, 1990: 81).

 

17. Para uma crítica, ver, p. ex., Bewes (1997), e, para uma apropriação positiva, o trabalho de Slavoj Žižek (1989).

 

18. Compare com Joll (1969: 17–39).

 

19. Todas as traduções de fontes em outros idiomas que não o inglês foram realizadas pelo autor original [TM].

 

20. Informações gerais sobre o processo de consulta podem ser encontrados no website (European Social Consulta, s.d.).

 

21. Existem, obviamente, outros projetos à Esquerda, que não foram discutidos aqui – a “lista” sugerida é, portanto, não-conclusiva, e nem todos que são esquerdistas são autoritários ou social-democratas (agradeço Julian Mueller por me apontar isso).