A recusa

(O texto abaixo foi publicado pelo grupo Inhabit. Reproduzimos nossa tradução para somar o debate sobre apoio mútuo e sobre o futuro do anarquismo).

A situação evolui tão rapidamente que até mesmo as últimas notícias estão de alguma forma desatualizadas. A velocidade da crise torna a análise impossível, a crítica mais insuficiente do que nunca – conceitos antigos desnudados por novas realidades. O que pode ser dito que não parecerá pitoresco até amanhã? É difícil pensar e agir nesse ritmo, mas é preciso tentar.

As novas formas de controle social só aceleraram e aprofundaram. Em uma inversão do circuito habitual de inovação, o que foi estreado em Wuhan fez seu caminho para São Francisco e Nova York. No final de março, três quartos dos americanos estavam sob alguma forma de quarentena e as empresas em todos os lugares foram fechadas.

As medidas econômicas para evitar a próxima crise financeira revelam a ficção do dinheiro e seu poder real sobre nossas vidas. O fechamento dos locais de trabalho mergulha milhões ainda mais na precariedade, mas também demonstra uma mentira social: a necessidade de trabalhar. A economia se apresenta tipicamente como uma força mítica estruturante de nossas atividades. Na realidade, é a maneira como eles nos governam. Nosso tempo, trabalho, paixão e inventividade canalizados para a inutilidade frenética, a distração vazia e o saque sistemático de tudo o que vale a pena.

Nós nos tornamos uma ameaça. Greves de aluguéis, “sick-outs” e piquetes proliferam. As autoridades se mobilizam para nos enviar de volta aos nossos empregos, mesmo correndo o risco de expor mais milhares de pessoas a doenças e mortes. Não pense que ninguém sabe o verdadeiro número de infecções. Não pense que o vírus pode se transformar em formas mais mortais. Eles estão mais interessados em salvar os mercados do que as nossas vidas. É o mesmo cálculo de sempre.

A vastidão e a letalidade da pandemia continua a inspirar comparações com as mudanças climáticas. Todas essas imagens virais de ecossistemas restaurados eram comoventes, mesmo que falsas ou enganosas, não porque demonstrem a aparente resiliência da natureza, mas porque mostram nosso desejo comum de ver esse sistema sombrio desaparecer para que a vida possa fazer seu ressurgimento. Se há uma lição clara desta tragédia mundial, é que a economia é a própria antítese da vida.

A vida é o terreno em que devemos combater a devastação do nosso tempo. Grupos de ajuda mútua surgem em toda parte, compartilhando recursos, boas práticas, coragem e cuidado. Prototipagem faça-você-mesmo e a P&D autônoma de máscaras caseiras e higienizadores de mãos aumentam as nossas capacidades e abastecem trabalhadores da linha de frente da medicina abandonados pelo sistema de saúde. Formamos redes para compartilhar informações, kits de ferramentas, memes, estratégia e determinação. Os guias online mais quentes são para assar pães, plantar jardins e exercitar-se em casa. Esta resposta digna não é menos poderosa por sua incapacidade de aparecer em público. A ressonância elimina a distância.

Conforme o número de infecções eventualmente começa a cair junto com o colapso dos mercados financeiros, eles exigirão que retornemos ao trabalho, que reiniciemos a máquina, na esperança de recompor a ordem social por declaração, por força, por algoritmo. Recusaremos, optando, ao invés disso, por nos compormos numa base totalmente nova, a partir das relações e práticas que assumimos. Livres de ter que cuidar da economia, cuidamos de nós mesmos, uns dos outros, e dos mundos que começamos a construir.

As coisas não podem e não vão voltar a ser como eram. Disto até nossos inimigos estão certos. Nossa capacidade de viver essa recusa significa começar agora, construir nossas redes e expandir nossas capacidades, dando a nós mesmos os meios para sobreviver à catástrofe deles.